Uraçá, o Índio Branco
Tuesday, July 5, 2022
Saturday, May 21, 2016
Viaje com a escritora Deana Barroqueiro
Nos dias 28 de Maio e 4 de Junho (Sábados, às 16 horas), estarei na Feira do Livro de Lisboa para conviver com os meus leitores. A agência de viagens TRYVEL/TRYART fez uma parceria com a minha editora Casa das Letras/Leya, para a apresentação das duas viagens que faremos com os meus romances: a 1ª, a Malaca, Java, Samatra e Molucas, com "O Corsário dos Sete Mares", na 2ª quinzena de Outubro de 2016 (ver aqui o magnífico programa - http://tryvel.pt/tour/corsario-sete-mares/), e a 2ª, ao Egipto e Etiópia com "O Espião de D. João II - Pêro da Covilhã", na Páscoa de 2017. Durante a Feira haverá uma campanha com desconto para quem se inscrever até 15 de Junho.
Monday, December 28, 2015
Publicado pela Editora Livros Horizonte
Dezembro de 2001
Uraçá, O índio branco
Deana Barroqueiro
Cap. I
Como um punho cerrado…
Gonçalo
apertou o trapo molhado contra o feio lanho no rosto procurando estancar o
sangue que escorria e a água meio salgada do rio trouxe-lhe lágrimas aos olhos
pela dor renovada. Conteve-as com esforço. Nunca mais o veriam chorar de dor ou
de raiva, nem haveria de sofrer um só dia que fosse as humilhações e maus
tratos do padrasto. A sua revolta era como um punho cerrado com um coração lá
dentro. Sufocara nele os sentimentos bons, deixando espaço apenas para o ódio e
o desespero. Nunca mais permitiria que o ferissem no corpo ou na alma.
Fez o juramento sobre a
pequena cruz de prata que a mãe lhe dera, há muito tempo, antes do pai se haver
perdido numa viagem de desventura, deixando-os ao abandono, e ela se ter casado
de novo. Levou a cruz aos lábios a selar a promessa sagrada pelo sabor do seu
sangue que por fim cessara de correr do rasgão feito pelo golpe do chicote:
Nunca mais!
Deixou a praia e avançou pelo
cais até ao grande terreiro da Ribeira das Naus, onde magotes de peixeiros,
hortelãos e confeiteiros carregados com cabazes de mercadorias se cruzavam num
vaivém incessante com mulheres e donas de boas casas que, seguidas dos seus
escravos, percorriam as tendinhas remexendo e discutindo o preço dos
produtos. Gonçalo foi violentamente
empurrado por um mariola[1]
vergado sob o peso de uma enorme saca e caiu sobre uma pipa de azeitonas que
quase derrubou, arrancando gritos e maldições à vendedeira:
– Vê-me por ond’ andas, ó
malparido, nã tens olhos no focinho? Mau raio…
–
Perdão, tiazinha, mas a culpa não foi minha...
Esgueirou-se,
rápido, para a zona dos estaleiros da construção do porto, iniciada por ordem
d’ El-Rei D. Manuel logo após o regresso de Vasco da Gama com a nova da
descoberta de um caminho de mar para a Índia. Havia sempre gente curiosa a
olhar e a comentar os avanços desta espantosa empresa e Gonçalo também gostava
de ver os homens empoleirados nas enormes vigas, espetando-as a maço no mar,
para nelas se assentarem os grandes tabuleiros de pedra dos molhes. Ia
escutando as conversas para se esquecer da dor no rosto e procurar um novo rumo
de vida.
–
Inda vai demorar muito inté algum navio poder largar daqui! – o capataz
sentia-se orgulhoso da atenção do grupo de mercadores que o questionavam.
–
Por isso, a Armada de Pedro Álvares Cabral partirá de Belém, no Restelo – disse
o homem mais velho –, onde El-Rei vai construir um grande mosteiro em
agradecimento pelo sucesso da Viagem do Gama.
Não
se falava de outra coisa, nos últimos tempos. Nesse domingo, aos nove dias de
Março do ano de 1500, ia partir a primeira grande armada para a índia, com uma
Embaixada d’El-Rei D. Manuel de Portugal para o Samorim de Calecut.
– Treze naus reunidas num só ano foi
obra, sim senhor! – confirmou Luís Pires.
–
El-Rei não se poupou a despesas para a ter pronta antes de Março – o capataz
não queria ficar fora da conversa daqueles homens ricos.
O
mercador mais velho sorriu:
– E
nós também não. A nau, comandada aqui pelo capitão Luís Pires, foi paga por nós
e ainda teremos de dar parte da carga que trouxermos a Sua Majestade…
– Mesmo assim o lucro que tereis com as
especiarias vos há-de compensar com muita vantagem, meus senhores!
–
Mas muitos homens hão-de morrer na empresa e, quanto a isso, não há lucro que
pague a miséria das mulheres e dos filhos que ficam ao deus-dará – lançou-lhes
de longe uma mulher vestida de negro.
– Nã
tem dúveda! – disse o velho que emendava umas redes de pesca. – Mesmo quando os
homens volvem sãos e salvos, são sempre as mulheres e os filhos que mais
sofrem, deixados ao abandono durante anos. Depois andam por aí a pedir e a
roubar!
Os
mercadores sorriram contrafeitos:
–
Não é tanto assim, tiozinho! – barafustou Luís Pires. – El-Rei ordenou, no
regimento desta empresa, que parte da paga dos homens seja entregue à família,
antes da partida, para que possam prover ao seu sustento na ausência dos pais,
filhos e maridos.
Gonçalo
pensou na mãe e afastou-se do grupo.
***
Não
podia volver a casa, depois do que acontecera. Nem mesmo a mãe lograria
protegê-lo da fúria do padrasto pois, vingativo como era, estaria a esperá-lo
de chicote preparado para terminar o que começara e só a sua fuga interrompera.
E o pior é que Afonso Freire não haveria de se contentar com uma dúzia de
chicotadas, pois o enteado tornara-se um perigo, mesmo uma ameaça, para ele e o
seu cúmplice. Um amontoado de homens e rapazes fê-lo aproximar-se, atraído pela
algazarra que mal deixava ouvir o oficial que agitava nas mãos impacientes umas
folhas de papel:
– Ou
vos calais ou tereis de pedir a outrem que vos leia o rol dos postos ainda por
ocupar na frota de Pedr’Álvares Cabral!
– Eh! Calai-vos lá e leixai o home
falar!
– Schiu! Deixai ouvir!
O
oficial começou a ler o longo rol e os homens iam entrando nos Armazéns da Guiné e Mina onde se faziam
os preparativos de todas as frotas que partiam para o comércio ou para a
descoberta.
– Eu
sou calafate, não tendes posto pra mim? Numa viagem de mais de três mil léguas
de mar, por certo haverá muitos rombos nos navios e estas mãos são mágicas a
calafetar frinchas, buracos e rachas no casco de qualquer nau ou caravela onde,
juro-vos à fé de quem sou, não há água que adregue a entrar – e o mocetão
mostrava, risonho, as mãos largas e calosas, enegrecidas do pez do seu mester[2].
–
Hoje é o teu dia de sorte, moço, que o capitão Bartolomeu Dias quer mais um na
sua caravela. Vai lá dentro dar o teu nome ao escrivão.
– Cá
vou eu, patrãozinho, que se não deve fazer esperar a Fortuna e logo quando ela
mete Luís Tomé, este vosso criado, no barco do Capitão do Fim que fez medo ao
Cabo Tormentoso.
Houve
gargalhada geral e acenos de cabeça dos mais velhos. O Capitão do Fim, o grande herói da Passagem[3]
era já um mito nas histórias dos marinheiros.
–
Vai-te em boa hora, meu doudo – disse o oficial ainda a rir –, e deixa-me
laborar.
O
mocetão desapareceu no escuro ventre dos Armazéns que pareceu engoli-lo como
uma onda gigante. Fascinado, Gonçalo não se movia, enredado num feitiço, esquecido
da dor e da fome. Como se aquela voz fosse a de seu pai a chamá-lo de longe, do
mar sem fim de sereias e de monstros que outrora lhe haviam povoado os sonhos
de menino feliz.
– E que mais há, patrão? Lede prestes!
– Chiu! Deixai-o dizer.
A
agitação inquieta do grupo aumentava à medida que iam sendo anunciados os
postos requerendo menor preparação ou experiência e Gonçalo foi empurrado para
mais perto do oficial que bradou de súbito:
– Três grumetes.
Gritou, sem se poder conter:
– Eu, patrão, que sou filho de
descobridor!
O
oficial sorriu.
– Quem é o teu pai, meu rapaz?
–
João Lourenço, que foi criado d’El-Rei D. João II e morreu a dobrar o Cabo.
– Um órfão do Rei! – murmurou alguém.
Fez-se
silêncio no grupo ainda numeroso. Qualquer menção aos descobridores que haviam
perdido a vida a tentar empresas impossíveis tocava fundo no coração dos
marinheiros e se um filho desejava seguir o rumo de seu pai desaparecido, isso
era causa maior de admiração. Na Casa da
Guiné e Mina dava-se preferência aos Órfãos do Rei – nome por que eram
conhecidos os filhos dessas vítimas da grande aventura dos descobrimentos – que
quisessem embarcar como grumetes ou pajens em qualquer navio a contratar
equipagem.
O
oficial pousou o olhar no rosto magoado, na ligadura improvisada manchada de
sangue ainda mal seco que parecia contar uma trágica história, mas o rapaz não
baixou os olhos. Quanta dor e revolta em alguém tão moço! Atravessavam-se
tempos difíceis e as crianças cresciam antes do tempo em abandono e violência.
A glória do Reino de Portugal comprava-se com oiro e miséria. E com as vidas
dos seus filhos…
A
voz do oficial tornou-se quase gentil:
–
Acaso saberás ler? – se o pai fora um servidor de confiança do falecido rei D.
João II, o rapaz tivera seguramente uma boa criação, talvez mesmo na escola do
Paço, que o Príncipe Perfeito criara
para os meninos nobres mas deixava frequentar aos filhos daqueles que o bem
serviam.
– Sei ler e escrever em português e
latim.
A prontidão da resposta fez rir toda a
gente.
– Com
qu’então, um escolar acabado – troçou um velho mareante, arrancando novas
risadas em redor. – Deve servir pra esfregar conveses!
Gonçalo
corou. O oficial franziu o cenho, com desagrado:
–
Ler e escrever são talentos preciosos, meu filho, numa embaixada ao Oriente
como esta viagem. Muita tinta há-de escorrer das penas dos nossos escrivães,
pois El-Rei quer tudo registado, o visto, o ouvido e o subentendido. Vai lá
dentro e diz ao Escrivão da Mesa que vais da minha parte e que te inscreva na
nau de Pedr’Álvares Cabral.
A
nau do Capitão-mor! Era muito mais do que ousara esperar da sua sorte. De
repente, tudo parecia fazer sentido e o seu impulso de curiosidade
transformara-se numa dádiva do Destino. Sabia, de ouvir contar, como a vida de
um grumete a bordo de uma nau era terrível, mas qualquer coisa seria preferível
ao que o esperava se o padrasto lhe deitasse a mão! Talvez pudesse embarcar já
e, assim, a nau capitânia seria o melhor de todos os esconderijos.
Não
hesitou. Com um gesto de assentimento e gratidão ao bondoso oficial, correu por
entre os resmungos invejosos de outros jovens menos afortunados para os
Armazéns que o receberam como uma promessa de salvação.
***
Engajado
como grumete na nau de Pedro Álvares Cabral! Sentiu uma tontura de mareio e o
gosto ácido subindo-lhe à boca lembrou-lhe que há muito não comia. Sentou-se no
chão a um canto, costas contra tábuas, respirando fundo. Ainda aturdido pelo
rumo que a sua vida tomava, vogando ao sabor de caprichosos acontecimentos que
não dominava e se sucediam a um ritmo vertiginoso, Gonçalo submetia-se a um
destino maior do que a sua vontade.
O
Escrivão da Mesa não pusera dificuldades à sua admissão, muito pelo contrário,
ao saber da recomendação do oficial superior, tratara Gonçalo com uma gentileza
que, de outro modo, o aspecto maltratado do moço não lhe mereceria. Ao vê-lo
assinar com desenvoltura o nome no livro dos registos, sorrira com aprovação e
chegara mesmo a dar-lhe conselhos sobre os cuidados a ter com os preparativos
para tão longa e dura viagem – fato para o calor e o frio, pois as estações
mudavam com as latitudes, além de alguns alimentos secos e de conserva.
–
Convém-te levar algumas viandas de reforço, mas só se tiveres esperteza pr’às
bem esconder de olhos cobiçosos ou alguém que te defenda dos furtos desses
rufiões que sabem fazer pela vida em todas as naus e caravelas! Terás uma ração
por dia de vinte e seis onças[4]
de biscoito e doze de carne, uma canada[5]
de vinho, meia de vinagre e uma quarta de azeite, o que não basta para
t’engordar, mas chega para te manter vivo. Peixe, terás tu mesmo de o pescar
ou, se tiveres com quê, de o comprar ou trocar com quem o consiga fazer.
– Eu não bebo vinho, Mestre.
–
Ora aí tens uma boa moeda de troca! – dissera, rindo, o escrivão. – Não te
há-de faltar clientela durante toda a viagem! – Entregou-lhe um papel com a
licença de embarque e prosseguiu: – Já podes ir além, ao Tesoureiro, para
receberes a metade da soldada a que tens direito. Mas toma tento, moço, dois
cruzados[6]
e meio ainda são uma boa maquia! Não gastes tudo nem deixes que to furtem.
Gonçalo
agradecera e fora receber o seu dinheiro. Agora apertava a pequena bolsa de
pano com os mil réis que o tesoureiro lhe dera e tentava deitar contas à vida.
Os grumetes eram os matalotes[7]
mais mal pagos da nau, com cinco cruzados por toda a viagem – a metade da
soldada de um marinheiro e este ainda tinha direito a cinco quintais[8]
de pimenta e uma caixa de especiarias livre de impostos para vender por bom
preço no regresso –, todavia, assim por junto, esta quantia representava para
Gonçalo uma pequena fortuna.
Não
podia deixar de gastar algumas moedas no comer e na compra do indispensável
fato para a viagem, mas o restante seria entregue à mãe, a fim de lhe dar
alguma protecção contra o padrasto, em caso de necessidade. Tinha de arranjar
maneira de lhe fazer chegar o dinheiro às mãos, em segredo e sem se deixar
apanhar por Afonso Freire que nesse momento andaria a farejá-lo por toda a
Lisboa, ansioso por lhe deitar a unha. Mas, por ora, precisava de comer, pois
com tanta fome mal podia pensar… Ergueu-se e cambaleou, de novo mareado.
–
Ei! amigo, que se passa? – alguém o agarrara com força, impedindo-o de cair.
Era um rapagão enorme, de rosto bondoso, que o olhava preocupado. – Precisas de
ajuda?
–
Foi só um mareio, com tudo isto – e Gonçalo indicou a multidão ruidosa e
azafamada que se apinhava dentro do Armazém – esqueci-me de comer.
–
Ora, moço, isso é lá cousa pra esquecer! Inté
podes cair enfermo, por via desse golpe na testa. Senta-t’aí, que pra tudo há
remédio, menos prá morte!
Gonçalo
obedeceu, pois não sentia forças para sair sozinho dos Armazéns da Mina e
agradeceu os cuidados do desconhecido que se sentou ao seu lado, abrindo uma
grande saca, enquanto dizia com cerradíssima pronúncia do Norte:
–
Olha, eu que já matabichei e comi o meu jantar nã me faço rogado a um naco de
chouriço com umas boas fatias deste pão branco que me cozeu a minha santa mãe
prá viage.
O
generoso gigante tirou do alforge meio pão do seu farnel e um enorme chouriço a
que cortou dois bocados com a navalha, estendendo o maior quinhão a Gonçalo
que, sentindo a água a crescer-lhe na boca, nem por cortesia fez menção de
recusar. O prazer de enterrar os dentes nas brancas fatias de pão quase o fez
esquecer o perigo e a desconfiança.
–
Chamo-me Mateus Ferrêro e, como diz o meu nome, sou ferrêro d’ofício. Vim a
Lisboa pra embarcar nas naus d’
El-Rei a buscar fortuna.
– Eu
sou… João Silva – mentiu Gonçalo, entre duas mastigadelas deliciadas. Escrevera
o nome falso no registo, para que o padrasto não lhe apanhasse o rasto e,
embora sentisse remorsos por enganar aquele moço tão generoso, tinha de usar de
todos os cuidados até sair de Lisboa. – Conseguiste posto?
O
rosto de Mateus escancarou-se num sorriso orgulhoso:
–
Vou na nau do Capitão-mor, já viste tal sorte? Na minha terra nem vão crer… E
tu? Toma lá, pra empurrar a bucha.
Estendia-lhe
um pequeno odre de pele com água e Gonçalo tomou uns goles que lhe acalmaram a
secura da garganta e o encheram de uma doce sensação de bem-estar como há muito
tempo não sentia.
–
Vamos ser companheiros de fortuna, Mateus! – Sentiu que a providência divina
continuava a protegê-lo, dando-lhe por amigo aquele gigante bondoso. – Eu
também vou como grumete na nau de Pedr’Álvares Cabral.
–
Ora, quem havia de dizer! Dá-me cá esses ossos, companhêro! – e o mocetão
apertou-o num abraço tão forte que quase lhe fez estalar as costelas. Porém,
apercebendo-se do esgar de dor do grumete, largou-o, atrapalhado: – Perdoa-me,
amigo, que sou um brutamontes e esqueço-me sempre da força que tenho…
Gonçalo ergueu-se, sorrindo:
–
Ainda estou inteiro e muito mais bem disposto, graças ao teu alforge que ajudei
a esvaziar. Mas, agora, preciso de comprar algum fato para a viagem e de ir
buscar um… uma encomenda da minha família e já não tenho muito tempo, que nos
querem embarcados na nau às sete horas desta noite.
Mateus
sentiu na voz do moço uma angústia e um medo que o sorriso não lograva
disfarçar. Estaria em perigo? Tinha o olhar de um animal acossado, quando
mirava ansioso a rua ou um novo grupo de homens a entrar nos Armazéns. E aquela
ferida terrível, como ou quem lha teria feito? Pois bem, gostava do rapaz,
havia de o acompanhar e proteger como a um irmão mais novo.
–
Vou contigo, se nã te molesta a
companhia, que sozinho vou perder-me no mundo.
Sem
esperar resposta, lançou o enorme saco de marinheiro para o ombro como se nem
lhe sentisse o peso e dirigiu-se para a saída. Gonçalo seguiu-o contrariado,
não vendo como poderia o ferreiro, com um tamanho daqueles, perder-se alguma
vez no mundo. Muito embora preferisse esgueirar-se a sós pelas ruas de Lisboa e
mostrar-se o menos possível até à hora de embarcar, não podia recusar a
companhia de Mateus depois do modo como ele o tratara.
Pouco
tinham andado, com Gonçalo a caminhar quase colado aos calcanhares do seu
companheiro a fim de passar despercebido, quando sentiu que lhe puxavam pela
ponta da camisa. A ruela era escura e não havia ninguém à vista.
–
Espera aí, Mateus, que tenho de falar com este moço.
Era
Gil, o filho mais novo dos seus vizinhos, com quem pescava às vezes e por isso
o miúdo adorava-o, porém, nesse momento parecia verdadeiramente assustado.
Tomou-o por um braço e afastou-se um pouco com ele, para que o ferreiro os não
pudesse ouvir:
–
Que se passa, Gil?
– O
teu padrasto anda à tua procura p’la Ribeira, parece doudo, diz que tu o
roubaste e, se t’apanha, arranca-t’o couro à força de chicotadas. Quem é
aquele? – o miúdo olhava embasbacado para a gigantesca figura do ferreiro,
recortada contra o fundo mais claro da rua.
– É
meu amigo, não te rales com ele. Viste a minha mãe? Que lhe fez Afonso Freire?
– perguntou Gonçalo ansioso, pois sabia como o padrasto era cruel e irascível.
–
Ele ameaçou bater-lhe se ela não lhe dissesse onde te tinhas escondido...
–
Mas ela não sabe de nada... – cerrava os punhos, de impotência e dor, por ter
de abandonar a mãe à fúria daquele marido tão diferente de João Lourenço.
–
Berrava que o tinhas roubado e ela te deixava fazer tudo o que t’apetecia e que
não passavas d’um vadio, só lhe davas despesa e não prestavas pra nada. Então a
tua mãe disse-lhe qu’amaldiçoava a hora em que tinha casado com ele e s’ia
embora para sempre, pois tu eras filho de João Lourenço e nunca poderias ser um
ladrão ou um vadio.
– A
minha mãe saiu de casa? – as lágrimas vieram-lhe aos olhos, de angústia e de
felicidade, mas com esforço impediu-as de cair. Ah, se a mãe pudesse
libertar-se de vez daquele homem! Mas como iria viver?
–
Ela fugiu pra nossa casa e Afonso Freire não lhe pôde fazer nada porque a minha
mãe não o deixou lá entrar.
–
Gil, eu tenho de a ver! Vou contigo para casa.
–
Não podes lá ir! Foi ela que me mandou à tua procura, pra te dizer que não te
mostres e vás pedir ajuda ao teu padrinho. Tens de fugir, porque o teu padrasto
quer dar cabo de ti. Que foi que lhe fizeste? Não lhe roubaste nada, pois não?
–
Não, Gil, eu é que descobri um roubo que ele fez. Mais tarde saberás o que foi.
Olha, diz à minha mãe que estou inocente e arranjei maneira de me pôr a salvo.
Em breve, se tudo correr bem, lhe hei-de dar novas do meu destino. Obrigado,
Gil – e Gonçalo abraçou-o.
–
Cuida-te e boa sorte! Com aquele ao pé de ti, ninguém se vai atrever contigo! –
e, a rir, partiu numa corrida, acenando um adeus.
O
fugitivo reuniu-se a Mateus que nada perguntou da longa conversa sussurrada que
tinha presenciado e que pusera um brilho de lágrimas e de agonia no olhar do
novo amigo. Quando o moço tivesse a certeza de poder confiar nele, logo haveria
de desabafar.
Gonçalo
sentia amargura contra a vida que parecia ter prazer em fazer-lhe mal e àqueles
a quem mais amava. Agora tinha mesmo de fugir e de deixar a mãe sozinha, a
menos que o padrinho a protegesse. Tinha de lhe pedir ajuda, não para si, mas
para ela. Porém, antes de mais, precisava de arranjar os papéis que lhe
permitiriam embarcar.
Conhecia
muito bem o porto de Lisboa e todas as ruas, ruelas e becos que levavam das
Casas e dos Armazéns da Guiné e Mina até à Praça do Pelourinho Velho, com os
seus numerosos escrivães de banca armada, prontos a redigirem toda a sorte de
documentos oficiais, discursos, redondilhas ou
cartas de amor e até, a troco de algum dinheiro, a forjar qualquer
assinatura ou certidão. Se queria fugir por mar, havia mister de arranjar
documentos que parecessem verdadeiros e ele sabia como fazê-lo. Depois das
compras, como a tenda do livreiro Bernardo Salgado ficava a poucos minutos de
caminho, poderia recolher o precioso embrulho que deixara à guarda do velho
amigo de seu pai, antes de tornar ao cais para embarcar. Mas, antes, tinha de
se livrar do companheiro.
A
praça era um chão de venda em leilão com pregão de móveis, panos de linho,
ouro, prata e até escravos negros e mouros. O ferreiro retardou o passo para
ver o pregoeiro apresentar as peças e dar início à almoeda, ante um numeroso
grupo de clientes interessados. Homens, mulheres e crianças, distribuídos por
grupos, segundo o sexo ou a idade, alguns trajados à portuguesa e com modos de
quem já conhecia a servidão em casa de brancos, outros quase nus e com olhos de
animais acossados, acabados de chegar nas naus que os haviam comprado aos seus
senhores ou roubado às suas terras.
–
Tamanha feira como esta nunca
se viu lá prós lados da minha terra! – pasmava-se o ferreiro. – Aqui nã falta
nada! S’inté dão ali pregão de mulheres e homes como de bestas...
–
Sim, aqui há almoeda de todo o tipo de mercadorias, mas a feira do Rossio ainda
é maior – disse, sorrindo do espanto de Mateus que parecia não ter limites face
às novidades de Lisboa. – Por certo, hei-de arranjar por cá algumas vestimentas
de bom preço em qualquer desses tendeiros que vendem roupa feita e usada.
Estavam
diante de uma longa fila de tendas transbordando de roupas de todo o tipo:
calças bragas e imperiais; gibões curtos e forrados, pelotes e tabardos para
tempos mais frios; as opas e os saios[9]
de melhor qualidade, para donas e donzelas, pendiam de cruzes de madeira
suspensas de cordas. No fim da fiada de tendas, Gonçalo viu a banca de um
escrivão de rua:
–
Vai dando por aí uma mirada aos pelotes, a ver dos preços, que eu preciso de
uma certidão para embarcar e aquele escrivão por certo ma poderá fazer sem
demora.
O
ferreiro, seguro de o poder vigiar e acudir a tempo se ele corresse algum
perigo, deixou-se ficar junto às tendas de roupa, embora sem o perder de vista
enquanto o moço tratava com o escrivão que, depois de uma breve troca de
palavras, tomou uma folha de papel e uma pena e começou a escrever. Para que
queria o rapaz uma certidão que, feita naquelas condições, não podia deixar de
ser falsa? Foi arrancado aos seus pensamentos pelos vendedores e vendedeiras
que o disputavam, com gritos e pregões:
–
Vede, senhor escudeiro – a mulher roliça sabia como adular o freguês, dando ao
gigante ferreiro o título da fidalguia –, exp’rimentai esta aljuba[10],
forradinha de pele, qu’é dina
dum marquês.
–
Cuidas qu’inda é Dezembro, Maria das Mercês? Pra que quer um mancebelhão assi
forte e de sangue na guelra mantelote d’invernia? Deixa-os comigo, que tenho
mor escolha...
–
Olha, Manel Seco, já lá diz o ditado “quem
não tem que fazer, arme navio ou tome mulher”…
–
Mulher, só sendo tu, Maria das Mercês! – e o algibebe suspirou ruidosamente
fazendo rir toda a gente, incluindo a visada que corou de satisfação.
Quando
Gonçalo se lhes juntou e disse que iam na Armada e, por isso, queria
vestimentas de matalote, os tendeiros, sem mais delongas, mostraram-lhe roupas
de tecido forte quase novas e o grumete comprou por bom preço, depois de muito
regatear, umas bragas, gibão, colete, duas camisas, um tabardo forrado de pele
e um par de borzeguins[11]
em couro. Mateus não resistiu ao apelo de um sombreiro azul com uma formosa
pluma carmesim que a tendeira lhe pôs na cabeça, ajeitando-lhe as abas reviradas
na frente, “como era de uso na fidalguia”.
–
Vede como vos vai bem! – Segurou o prato de latão[12]
diante dele para que visse o efeito. – Como estais galante! Pronto pra encantar
solteiras e casadas e ganhar o coração das mais belas. Com tanta donzela por
casar, vão em má hora nas naus os moços mais garbosos e discretos e quedam-se
os velhos feios e metediços. Que desbarato!
–
Tendes razão – disse a moça que experimentava uma touca, sem tirar os olhos de
Mateus –, nesta terra já só há mulheres, meninos e velhos…
–
Tendes medo de não casar a gosto? – Manuel Seco parecia abespinhado com o rumo
da conversa. – Olhai que quem muito escolhe pouco acerta!
De
súbito, Mateus, que se mirava e remirava na superfície polida e brilhante do
prato de latão, deu um piparote na pluma e exclamou, encantado:
– Estou de morrer!
Gonçalo
interrompeu-lhe o enlevo:
– É
tarde, temos de embarcar! Só preciso de me despedir de um amigo, livreiro de
ofício, ali mesmo à esquina. Eu dou lá um salto, enquanto acabas de comprar o
que te falta e pagas o fato. Espera-me aqui que não tardo.
Ao
vê-lo afastar-se, Mateus deixou o sombreiro para não perder tempo a discutir o
preço e foi-lhe no encalço. O grumete não desejava a sua companhia e ele
respeitava-lhe o segredo, mas se o queria proteger tinha de saber o que o
assustava daquela maneira e o fazia olhar para todos os lados enquanto atravessava
a praça quase a correr. Viu-o entrar numa loja com muitos livros expostos à
porta em duas bancas de madeira, a que Mateus se chegou, pegando num livro para
o folhear como se soubesse ler, mas de ouvido à escuta pois as vozes do amigo e
de um homem idoso chegavam-lhe pouco claras:
–
…merecia prisão por te tratar assim, esse Afonso Freire! Fazes bem em partir e
fica descansado que eu hei-de andar de olho nele e ver se apoquenta Constança.
–
Muito agradecido, Padrinho – a voz tremeu-lhe um pouco –, assim já me custa
menos deixar a minha mãe. Nem me posso despedir dela, pois o meu padrasto deve
ter gente à espreita para me apanhar.
– Eu
lhe contarei por que tiveste de partir.
–
Dai-lhe este dinheiro, Mestre Bernardo, dizei-lhe que eu hei-de escrever. Terei
de enviar as cartas para aqui, em vosso nome.
–
Não precisas de deixar dinheiro, pois eu velarei para que nada falte a
Constança. Podes partir descansado, meu filho, pois antes de ser teu padrinho,
já eu era o melhor amigo do teu pai e, além do mais a tua madrinha, que Deus
tem, adorava-te.
Gonçalo
sentiu um nó na garganta ao recordar Filipa Salgado, a mulher de Mestre
Bernardo, sempre pronta a ajudar toda a gente e tão carinhosa como a sua
própria mãe.
–
Tenho de ir, padrinho, vou embarcar daqui a nada. Podeis dar-me o… embrulho?
–
Escondi-o debaixo daqueles pergaminhos velhos. Mas, não seria melhor deixá-lo
aqui, em segurança? Eu me encarregaria de o fazer chegar às mãos do
Meirinho-mor, com a história do roubo, pois trata-se de um caso de espionação por
um traidor ao serviço de estrangeiros.
–
Não, Mestre Bernardo, não posso fazer isso! Seria um dos primeiros lugares onde
o meu padrasto viria fazer uma busca, se suspeitasse que o escondíeis aqui, e
não tenho dúvidas de que vos destruiria a loja e vos faria todo o dano que
pudesse. Terei de o levar comigo.
–
Toma cuidado, que ainda não estás livre e Afonso Freire, com os seus negócios
escuros, é homem sem honra nem escrúpulos.
–
Bem o sei! Estarei atento e escondido na nau. Dai-me agora a vossa bênção.
–
Deus te abençoe, meu filho. Vai em mui boa hora!
Abraçaram-se
longamente com os olhos húmidos de lágrimas e Gonçalo saiu da loja, tropeçando
em Mateus que não teve tempo de se esconder.
– Que fazes tu aqui? –
perguntou sobressaltado. – Que foi que ouviste?
– Que não és João mas
Gonçalo, que estás em perigo e tens de fugir. Olha, é certo que mal me
conheces, mas eu sou um tipo honesto e amigo do meu amigo. Por isso, podes
confiar em mim e contar comigo pró que
der e vier. Ou vou-me embora e tu tens de te haver sozinho.
– Tens razão, Mateus, ajudaste-me
sem me conhecer e eu paguei-te com desconfiança e mentiras. Perdoa-me e ouve a
minha história, enquanto vamos para o cais. Mas, antes de mais, guarda-me este
embrulho no teu saco e jura-me que o destróis se me acontecer alguma coisa.
–
Juro! – prometeu solenemente o gigante.
–
Ainda vamos a tempo de comprar, por aqui perto, algumas viandas para a
viagem, pois foi o próprio Escrivão da Mesa do Armazém da Mina que me
aconselhou a levar algumas conservas e doces a fim de ajudar à ração de grumete
que não deve ser lá grande cousa.
–
Isso é o que mais me apoquenta nesta viage, que sou uma alimária de muito
sustento!
Gonçalo
riu-se e, puxando Mateus por um braço, virou no
Arco dos Barretes para a Rua da Confeitaria, onde ainda havia muitas
mulheres nas bancadas cobertas por panos brancos muito limpos, chamando os
compradores com os seus vivos pregões a oferecer-lhes pinhoada, nogada,
marmelada e laranjada, bem como toda a sorte de conservas, por entre os enxames
de moscas, mosquitos e abelhas que ferravam como danados e que as tendeiras
sacudiam com panos, sem lograrem afastá-los dos bolos de açúcar de cana e ovos,
nem evitar que zumbissem freneticamente as asas até à morte, quando se colavam à superfície lisa
e brilhante das tigelas de marmelada ou se afogavam nas espessas gotas douradas
que destilavam dos bojudos potes de mel.
– É
o que melhor se aguenta em longas viagens, desde que não fiquemos em calma
durante muito tempo, parados sem vento no meio do mar – disse Gonçalo,
distribuindo pelos dois sacos de marinheiro as quatro tigelas de marmelada e os
dois potes de mel que tinham acabado de comprar, após duro regateio, pois o
moço começava a assustar-se por ver como as moedas, que horas antes lhe
pareciam uma fortuna, se escoavam por entre os seus dedos como areia da praia.
– O meu pai contava-nos, a mim e à minha mãe, que na passagem da Guiné, quando
isso acontecia e o calor apertava, o mel e a marmelada azedavam, a manteiga até
fervia e todo o comer da nau se estragava.
Desciam em direcção ao porto,
através do emaranhado de ruas e ruelas de Lisboa, divididas pelos muitos
mesteirais e ofícios, discutindo e comprando objectos ou produtos de maior
necessidade e, aos poucos, Gonçalo contou ao novo amigo a história da sua vida
e a estranha e perigosa aventura que pusera o padrasto em sua perseguição.
Estavam
prestes a chegar à Ribeira Velha onde
diariamente vinham muitos
peixeiros, hortelãos, confeiteiros, cortadores, padeiros e doceiros a vender os
seus produtos para alimento da grande cidade, sobretudo agora com a preparação
de tão grande armada e, mesmo de longe, já se viam os efeitos dessa azáfama
pelo grande número de homens e mulheres que se cruzavam com eles, apressados,
carregando cestas, caixotes e sacos de toda a sorte, metendo-se de permeio e
separando-os por momentos.
Mateus vinha mais embaraçado,
por ter tirado na última parte do caminho o saco a Gonçalo com um “Deixa lá
ver isso, pequenelho, que mal podes com uma gata pelo rabo!” e transportava
agora os dois fardos nos lombos como se fossem duas trouxinhas de doces, mal
lhes sentindo o peso, apenas um pouco importunado pelo seu tamanho quando
batiam nos outros carregadores, arrancando-lhes maldições e palavrões, enquanto
rodopiavam num esforço para não darem com a carga no chão.
– Bons olhos te vejam, rapaz!
– o homem saíra da taverna e pousara-lhe a mão no ombro. – Ond’é que te
meteste, magano, que o teu padrasto anda a ver de ti desde manhãzinha, sem
lograr pôr-t’as vistas em riba?! Afonso Freire inté pediu ajuda aos amigos pra
te darem o recado mal te vissem e te levarem logo pra junto dele... pra nã te
perderes de novo!
– Deixe-me ir, Ti António,
que o meu padrasto quer acabar comigo!
A voz trémula do moço e a
expressão assustada não pareceram comover o homem de rosto avermelhado e olhos
remelosos, raiados de sangue pelo muito vinho já emborcado.
– Se o Freire está de mal
contigo é porque lh’aprontaste alguma desfeita e ele quer pedir-te contas. E
daqui já nã sais, inté qu’ele chegue, que lhe vou mandar recado.
Mateus acercou-se lentamente
por trás do homem, vendo como a mão pousada no ombro do amigo num gesto que à
primeira vista parecia afectuoso mas se cerrava sobre ele como uma garra. Era
disto que Gonçalo andara a fugir todo o dia e, se antes se tinha disposto a
ajudá-lo, agora que sabia a verdade não iria permitir que uma corja de bandidos
levasse a melhor sobre aquele rapaz corajoso e decidido a sacrificar a sua vida
por uma boa causa.
– Eh! amigos! – disse sem dar
mostras de conhecer Gonçalo que, apesar da sua turvação, se apercebeu de que o
ferreiro se estava a fazer mais simplório do que era. – Dizei-me, pardeus, por
donde se vai prá Ribêra das Naus, que nã atino com uma cidade assi tamanha.
– Nã há qu’enganar, home, é
por i abaixo – e Ti António apontou na direcção do rio, abrandando um pouco a
vigilância sobre a sua presa.
De longe chegava-lhes o
cheiro do Mal Cozinhado, uma dezena de cabanas com mesas e bancos de
tábuas corridas, onde muitos homens e mulheres estavam ainda com os seus braseiros
de fogo a assar peixe para dar de comer aos trabalhadores e viajantes.
– Por aqui ou por ali? –
perguntou Mateus, com ar inocente, piscando um olho ao amigo e movendo o corpo
para a esquerda e para a direita, de tal modo que as pontas dos sacos embateram
contra o homem, derrubando-o.
Solto, Gonçalo largou a
correr rua abaixo. Ti António gritou enquanto forcejava por se erguer,
empurrando o ferreiro que fingia ajudá-lo, desfazendo-se em desculpas, mas o
mantinha contra o chão:
– Manel Cruz, Maceiro! Deixa-me, home, que se nos foge
o ladrão!
Dois rufiões de má catadura
assomaram à porta. Mateus viu-os mas prosseguiu com a farsa:
– Perdoai o meu mau jêto, que
sou uma besta azambrada[13].
O moço era um ladrão? Cuidei que era vosso filho!
Ti António pôs-se finalmente
de pé e, dando um encontrão em Mateus, berrou de novo:
– Cruz, Maceiro! É o enteado do Freire. Escapou-se-me das unhas, o ladrão.
Vai além, caçai-o depressa!
Os dois vadios puseram-se a
correr e Mateus foi-lhes no encalço, bradando:
– Se é ladrão, deixai-o
comigo, gentes, que lhe deito a unha num instante.
A tarde findava, as sombras
adensavam-se ainda violáceas e já não tardaria muito para a escuridão cobrir os
molhes do porto com o seu manto, porém a lua quase redonda daria luz bastante
para se poder andar pelas ruas sem se atolar nos buracos e valas das inúmeras construções.
Mateus viu Gonçalo enfiar-se
por uma ruela e os dois rufiões encurtarem a distância que os separava e
apressou a corrida, apesar do peso dos sacos e das pancadas que eles lhe davam
contra as pernas com os solavancos. Entrou na viela deserta e negra quase ao
mesmo tempo que os perseguidores e, sem abrandar a corrida, largou um dos sacos
num recanto escuro e, com um esforço titânico, ergueu o outro fardo nos braços
e lançou-o com toda a sua força contra os dois homens que corriam a par. O
pesado saco acertou-lhes em cheio nas cabeças e costas derrubando-os como a
mancais, os paus do jogo do fito ou da malha.
– Gonçalo! – gritou Mateus a
plenos pulmões. – Pára de correr que destes dois já tás livre.
O moço estacou ofegante e
virou-se para trás vendo a alta figura do amigo inclinar-se por sobre os corpos
caídos, como a certificar-se de que estavam bem desacordados. Correu para ele e
abraçou-o:
– Bem hajas, Mateus, que me
salvaste de novo. Grande golpe!
– Pois foi, mas o pior é que
as malgas da marmelada e os potes de mel devem estar feitos em cacos!
– Que todo o mal seja esse,
meu amigo! Vejamos os estragos e saiamos daqui, antes que estes despertem ou
apareça a guarda – disse, rindo, enquanto abria o saco e apalpava o conteúdo.
Cap. II
A rota secreta das especiarias
Todo
o povo de Lisboa quisera participar na despedida da armada de Pedro Álvares
Cabral e o extenso areal da praia do Restelo, assim como os campos em volta
quase desapareciam sob os pés de uma imensa multidão, vestida com os seus
melhores trajos domingueiros, à espera de ver de perto El-Rei ou pelo menos
algum famoso descobridor de que a frota ia bem recheada. Uma aragem de emoção,
mais forte do que a brisa fresca de Março, trazia um arrepio aos corpos e um
brilho novo aos olhos. E não era para menos, que o espectáculo merecia pena e
tinta de um cronista: ancoradas ao longo da baía do Restelo, nove naus, três
caravelas e uma naveta para transporte de mantimentos, acabadinhas de sair dos
estaleiros da Ribeira das Naus, espraiavam as velas brancas com as vermelhas
cruzes de Cristo ao centro, como borboletas gigantes de belas asas ao vento,
impacientes da espera.
– Formosa Armada, sim, senhor!
– El-rei inda quer fazer
tratos com esse tal Samorim de Calecut que, na primeira viagem, por pouco não
matou o capitão Vasco da Gama e os seus homens?
– É que o gosto da pimenta e
o cheiro da canela são mais fortes...
– Por via das dúvidas vai esta frota tão carregada de armas
e de soldados que mais parece ir combater que comerciar.
– D. Manuel quer dar-lhes o recadinho: mais vale serem
nossos amigos do que nossos inimigos…
Gonçalo
ouvia pedaços das conversas, enquanto se mantinha direito e quieto, como os
restantes membros da equipagem, na ordem estabelecida pelo Guardião, o ajudante
do Mestre responsável pelos grumetes, à força de apitadelas e berraria. As
tripulações de todas as naus estavam formadas na praia – a sua no lugar de
honra, por ser a do Capitão-mor –, tendo à retaguarda as alas dos quase mil
homens de armas destacados para a Índia para o que desse e viesse. Esperavam
por Sua Alteza que, depois da missa, viria até à praia, em solene procissão. a
fim de fazer as suas despedidas e assistir à partida.
O coração batia-lhe descompassado e a ferida, que
começava a cicatrizar, latejava e aquecia-lhe o rosto, secando-lhe os lábios
como pergaminho. O pergaminho! Pensou no precioso in-folio[14]
guardado na nau, enrolado na camisa velha e suja e assustou-se de novo. Ainda
não estava a salvo no mar, muito pelo contrário, por azar seu tinha sido
enviado para aquela manobra em plena praia com todos os olhos postos neles e,
em qualquer momento, podiam reconhecê-lo e deitar-lhe a mão. O padrasto e os
seus cúmplices sabiam do risco que corriam se ele contasse o que descobrira,
por isso tinham de reaver o mapa a todo o custo e fazer desaparecer a
testemunha perigosa.
Não acreditava que Afonso
Freire o julgasse capaz de deixar a mãe e embarcar à aventura, embora não se
pudesse fiar nisso… No momento da inscrição dera o nome falso de João Silva para o iludir e rapara o cabelo,
mas depois do ataque na noite anterior… Fizera descair o barrete para a cara,
cobrindo em parte a ferida que alguém lhe tratara na nau por ordem do Guardião,
esperando passar despercebido entre tantos moços e homens feitos que compunham
as hostes dos grumetes e marinheiros.
Discretamente olhou em volta,
temendo ver rostos conhecidos a farejá-lo no meio da multidão, mas de familiar
apenas viu a cabeça de Mateus, ao longe, assomando vários palmos acima das dos
companheiros no grupo dos mesteirais – carpinteiros, serralheiros, ferreiros,
calafates, estrinqueiros[15]
e até um meirinho para julgar os crimes – que compunham o grosso da marinhagem
e levavam Gonçalo a pensar na Armada como uma cidade flutuante, muito bem
organizada, com o seu governo, os seus guardas, a gente grada que dava as
ordens e era servida e a arraia-miúda dos trabalhadores que apenas podiam fazer
o que lhes mandavam.
O padrasto marcara-o para
toda a vida, porém a feia cicatriz fazia-o parecer mais velho, ajudando-o a
alistar-se na frota sem ter de responder a muitas perguntas sobre a idade.
Tinha-se precavido para o caso de lhe pedirem uma autorização escrita do pai ou
tutor para poder embarcar se o julgassem com menos de dezasseis anos, pois
conseguira de um desses escrivães da Praça do Pelourinho Velho um documento que
passaria facilmente por original aos olhos pouco atentos das autoridades do
porto. E assim fora.
***
Como uma nuvem de mosquitos,
batéis de todos os feitios e tamanhos, embandeirados e galantes, iam e vinham
num grande frenesim entre as naus e a praia a levar e trazer gente. Os que não
tinham licença para deixar os seus postos choravam de alegria e mágoa ao verem
a família, encolhida de medo, dentro dos barquinhos que se encostavam ao casco
da grande nau e, debruçando-se da amurada, lançavam-lhes as últimas
recomendações, recolhendo numa corda cestos, embrulhos e sacolas com os
presentes e mimos de última hora, para adoçar os momentos de solidão e
completar o magro rancho da nau, muito embora a armada levasse grande
abundância de carnes e pescados secos e salgados, grãos e favas e todas as
outras viandas necessárias para tão longa viagem e para cerca de mil e
trezentos homens.
– Qual é a nau capitânia, meu pai? – o
marinheiro içara o garoto deslumbrado para dentro da caravela, cujas madeiras
novíssimas e envernizadas devolviam ao sol um brilho quente de cobre.
– É
a que está na dianteira, para ser a primeira a sair e indicar o caminho às
outras e fazer-lhes os sinais combinados.
– Sinais?
–
Sim, chamar os pilotos a conselho, dar-lhes ordens para lançarem âncora ou
combaterem em caso de ataque. E todos têm de obedecer, tal como tu, sempre que
a mãe te der uma ordem, senão, quando eu voltar, terás de me prestar contas. E
agora anda daí ver as nossas bombardas[16]
de meter medo a qualquer corsário por mui feroz que possa ser.
***
Na Ermida de Nossa Senhora de Belém
acabara a missa cantada, as fanfarras soaram
e fez-se um silêncio comovido e atento quando o Capitão-mor ajoelhou
diante d’El-Rei que lhe entregou a bandeira da Ordem da Cavalaria de Cristo:
__ Pedro Álvares Cabral, Nós muito vos
recomendamos que guardeis este regimento sobre todas as cousas. Tomai este
estandarte, pois sois Capitão-mor da Armada com poder de baraço e cutelo[17]
em toda a pessoa nela embarcada que vos desobedecer. Agora prestai vosso
juramento, preito e menagem.
__
Juro, com a ajuda de Deus, levar a cabo esta
empresa como leal e fiel vassalo de Vossa Majestade, a quem sempre servirei com
honra sob esta bandeira por Vós posta em minhas mãos. – Beijou a orla do
estandarte e a mão do rei.
Ergueu-se,
alto e magro, um rosto enérgico de trinta e poucos anos marcado pelas duras
campanhas de África, os cabelos e a barba comprida acinzentando-se de cãs[18].
O seu olhar sereno pousou sobre os capitães que, vestidos com os seus trajos de
gala, assistiam de pé a respeitosa distância e acrescentou:
__
O mesmo exijo a todos os meus capitães e
oficiais, tendo Vossa Majestade por testemunha. Senhores, jurai seguir o rumo
que eu vos traçar e obedecer-me em tudo o que vos mandar.
Um por um, os capitães e oficiais das naus fizeram os
seus juramentos. Cabral conhecia e respeitava muitos deles, homens
experimentados no mar, exploradores curiosos e sabedores: Sancho de Tovar, o
seu sota-capitão[19];
Duarte Pacheco Pereira, o navegador de confiança de D. João II, mandado em
inúmeras viagens secretas a procurar novos mundos; Nicolau Coelho, o
companheiro e amigo de Vasco da Gama; os irmãos Bartolomeu e Diogo Dias, os
primeiros a dobrarem o Cabo das Tormentas e a descobrirem a Passagem entre dois
oceanos; Simão de Miranda, Vasco de Ataíde e tantos outros… Comandar tal gente
era um privilégio que talvez não merecesse. Sentiu orgulho e temor, mas nada no
seu rosto o mostrou.
***
Os gritos e correrias da multidão, que quase lhes
desmanchara a formatura, alertaram Gonçalo para a chegada do rei. Por cima do
ruído do mar e da gente, o seu ouvido apurado conseguia distinguir os cânticos
da procissão. Em outros tempos fizera parte do coro da capela d’El-Rei D. João
II e cantar continuava a ser um dos seus maiores prazeres. Na frente, sob o
dourado pálio, vinha D.
Manuel I com o Bispo e o Capitão-mor e todos
os capitães atrás deles. Transportando relíquias e cruzes, os oito padres
franciscanos que iriam fazer bons cristãos dos pagãos da Índia caminhavam
descalços, mais os oito capelães das naus com o seu vigário, seguidos de toda a
corte e de muita outra gente honrada, cantando
e rezando com piedosa devoção. Todos se ajoelhavam à passagem do rei e
das relíquias, mas os olhos dos mais curiosos, sobretudo das mulheres, não
perdiam pitada e os ditos desmentiam a compostura dos corpos.
Na praia romperam as
fanfarras e todas as naus dispararam salvas de artilharia. O som das trombetas,
atabaques[20], sestros[21],
tambores, flautas, pandeiros e até de gaitas de foles levantavam os espíritos
mais melancólicos e muita gente bailava, mostrando que o coração de todos se
movia entre o prazer e as lágrimas com a partida de tantos dos seus homens. Os Capitães e primeiros oficiais foram postar-se
diante das suas equipagens, apenas Pedro Álvares Cabral se manteve na
bancada real, junto de Sua Alteza que continuava a fazer-lhe as últimas
recomendações numa voz apenas para os seus ouvidos.
Soaram as trombetas para
recolherem às naus, fizeram-se novas salvas com artilharia e, em perfeita
ordem, os capitães começaram a desfilar com os seus homens diante d’El-Rei para
lhe beijar a mão em despedida. D. Manuel fez a todos muitas honras, dizendo
graves e bondosas palavras, mostrando-se muito agradecido por tamanha lealdade
e tão precioso serviço prestado não somente à sua pessoa mas também a Deus e ao
Reino de Portugal. Recomendou ainda aos
capitães o bom trato da gente, sobretudo
o reparo dos doentes.
Gonçalo
tinha a alma presa na cerimónia da despedida. Sentia orgulho em estar ali e
imaginou por momentos o pai, com ele ao lado, a desfilar com os seus homens
diante do Rei Venturoso para lhe beijar o anel e o coração apertou-se-lhe de
dor e saudade. Uma mão de ferro apanhou-o pelo cachaço e ergueu-o no ar como se
fosse um cachorro vadio. O padrasto! A seu lado, de rosto de pedra e olhos
acerados, o espião estrangeiro sorria de triunfo.
__ Finalmente caçado como um rato que és!
Quem havia d’imaginar que tinhas esperteza pra t’esconderes aqui?! Já
desesperava de t’encontrar e afinal apanhei-te por acaso e onde menos contava
ver-te. Inda gostava de saber como escapaste ao Manel Cruz e ao Maceiro e os deixaste desacordados na
viela, que não s’alembram de nada Mas, antes d’ajustarmos contas, vais dizer-me
onde tens o pergaminho roubado e, asinha[22],
qu’o tempo voa!
Gonçalo
empalidecera. Mais uns minutos e teria ganho a sua liberdade e… a vida. Porém
não iria ceder, nunca lhes entregaria a carta de marear com a preciosa derrota[23]
traçada com tanta dor e sacrifício por Vasco da Gama e os seus homens! Derrota
secreta que seria paga a peso de ouro aos espiões. Lançou-lhe, altivo:
__ Vós é que o roubastes e sois traidor!
Afonso
Freire corou de fúria e medo, os dedos apertaram-se mais em volta do magro
pescoço do enteado e Gonçalo gritou. O maldito do rapazelho ainda o havia de
perder! O castelhano disse entre dentes, inquieto:
__ Cuidado
con la gente que nos mira!
De
longe Mateus apercebera-se, inquieto, dos movimentos suspeitos dos dois homens
junto do amigo e esperava o momento de intervir. Também o Guardião, sempre
vigilante, notara a agitação e aproximava-se.
__ Que temos aqui? Afastai-vos que a
equipagem vai agora desfilar.
Afonso
Freire disse, arrogante:
__ Venho buscar o meu filho que não tem
licença minha pra embarcar.
O
oficial mostrou no rosto todo o desagrado que lhe causava a cena inesperada:
__ Agora?! Mas o moço já está engajado na
nau capitânia! Não podemos ficar com faltas na equipagem no momento da largada…
__ Mas eu não o deixo partir!
__ Olhai pró qu’eu estava guardado! Isto só a mim… na hora da saída! __
o homem estava furioso. __ Esperai, enquanto vou chamar o Meirinho
da Armada.
Afonso
Freire e o castelhano fizeram um movimento de recuo ao ouvir mencionar o
oficial da Justiça e, apercebendo-se do seu receio, o desesperado grumete
tentou a sorte:
__ Guardião, eu não sou filho deste
homem, só trabalhava para ele. Vede, tenho aqui a licença do meu pai – e
entregou-lhe o documento falso.
O
Guardião não sabia ler, mas não quis dar parte de fraco para não perder a sua
autoridade. Além disso não podia ficar sem um grumete na hora da partida da
Armada.
__ Parece-me em ordem. Porque dizeis que
é vosso filho, se o não é?
Antes
que o padrasto falasse, Gonçalo disse:
__ Não tendes de vos preocupar comigo nem
com o pergaminho, que está bem guardado. Mas agora deixai-me partir e dar rumo
à minha vida e eu não vos anojarei[24]
na vossa. Mas se me impedis de partir, eu terei de dizer ao meirinho o motivo
da vossa proibição.
Afonso
Freire sentiu a promessa e a ameaça na fala do enteado, pensou no oficial da
Justiça e arrepiou caminho:
__ Vede, Mestre, como é ingrato! Trato-o
como um filho e paga-me desta sorte. Levai-o pois convosco e fazei-o trabalhar,
qu’ é madraço.
Fez
um sinal ao castelhano e começou a afastar-se, atirando-lhe entre dentes um “Não julgues que me escapas” que o
Guardião não ouviu, pois bradava contra Gonçalo, descarregando nele o mau humor
causado por aquele aperto de última hora:
__ Se me aprontas mais alguma, meu malandro, levas vinte
chicotadas nesses lombos que ficas sem pele pra te cobrir os ossos! E toma tento que vou andar d’ olho em
ti…
–
Ele não queria perder um criado, Mestre Guardião, foi só por isso que aqui
veio...
As
fanfarras soaram de novo interrompendo o Guardião que retomou apressado o seu
posto, permitindo ao grumete respirar fundo e dominar a tremura do corpo.
Escapara por pouco! Mateus, na ala dos mesteirais, percebeu que o perigo
passara e sossegou, afrouxando a tensão dos músculos preparados para a luta,
pois dispusera-se a arrancar Gonçalo das mãos dos seus inimigos a soco se
preciso fosse, armando tal confusão que lhe permitisse escapar, nem que para
isso acabasse no Tronco[25]
e perdesse a viagem. Pedro Álvares Cabral avançou até ficar diante dos seus
homens que se perfilaram vaidosos e, ao som do apito, começaram a desfilar com
brio. Gonçalo fez como eles, contente por ter cumprido o seu dever – João
Lourenço, se fosse vivo, teria tido orgulho no filho.
***
Na orla da
praia foi-se perdendo a disciplina e a ordem nas fileiras, à medida que os
homens procuravam embarcar nos numerosos batéis para serem levados às naus. Os
familiares e amigos, como uma onda impossível de reter, tinham rompido o cordão
de soldados que os separava do local de embarque e agarravam-se aos seus entes
queridos, chorando e gritando de desespero, com medo de não mais os voltar a
ver:
__ Ai, marido da minh’alma – soluçava uma
mulher ainda nova, o rosto desfeito em lágrimas, com as mãos fincadas no barco
que partia e já com a água pela cintura, sem atender aos rogos do marido para
volver à praia –, que vou fazer sem ti? Vem comigo, home de Deus, nã me
deixes ao abandono!
Dois
homens entraram pelo mar dentro e, desprendendo-lhe à força os dedos enclavinhados
na borda do barco, arrastaram-na já desacordada até à praia, para junto da
mulher idosa que, de joelhos, pranteava:
__ Ai, o mê rico filho, que se vai perder
no mundo! Ai, minha Nossa Senhora do Ó, livrai o mê menino de todos os perigos,
qu’eu prometo dar três voltas de joelhos na vossa igrejinha…
Os
prantos, as rezas e os gritos quase faziam perder o ânimo aos menos esforçados
e muitos dos grumetes mais moços soluçavam como crianças que eram, recebendo
dos marinheiros mais velhos, apiedados, algumas palavras de consolo. Os barcos
iam e vinham num movimento contínuo a que não se via o fim, pois a gente era tanta que mal se podia romper na
praia e as tripulações misturavam-se, cada um buscando os esquifes[26]
do navio onde se engajara, por entre os atropelos dos que saltavam para dentro
por engano e logo eram escorraçados dos pequenos barcos já apinhados de gente e
balançando perigosamente:
__ É este o batel da d’El-Rei?
__ Não, home de Deus, este é das gentes de Nicolau Coelho. P’rás do
Sota-Capitão Sancho de Tovar é lá ao fundo. – E o contramestre impaciente
gritou para os seus homens: __ E, vós, tratai mas é de remar.
__ Dianho! Esperai aí, que também ‘tou enganado!
Atão nã ides p’rá Nossa Senhora da
Anunciada, a caravela de Nuno de
Leitão?
__ És mesmo bruto, home, atão nã vês qu’aqui é o cais das naus, por ser mais fundo?
Desanda, qu’ inda tenho mais viajes pra fazer.
__ Agora, Mestre? Mas já ‘tamos fora da
praia e eu nã me quero molhar!
__ Olhai a fidalguia! Um marinheiro que
nã quer molhar as barbatanas! Eh, rapazes, lançai-m’ esse marau borda fora!
Sem se
fazerem rogados, dois mocetões agarraram o desprevenido intruso e lançaram-no
ao mar onde caiu de chapão, esbracejando e soltando pragas, mal se ergueu
sufocado, com a água pelo pescoço. Um coro de chistes e risadas acompanhou o
seu regresso à praia.
***
No alto
estrado, ricamente alcatifado e com toldo de espessos brocados, erguido na praia para abrigar El-Rei e a Corte, D.
Manuel captava de longe as emoções e o sofrimento do seu povo que no afã de o
servir lhe rasgava com o corpo e a alma o caminho da Grandeza e da Memória,
talvez até a senda de um Império na Esfera do Mundo. A ‘Sphera, a divisa dada
anos antes pelo seu cunhado, el-Rei D. João II, depois de lhe ter assassinado a
sangue-frio o irmão Diogo, fora uma ironia e um suborno daquele rei implacável
para o apaziguar, para lhe calar o ódio e a sede de vingança, oferecendo-lhe o
trono após a sua morte, se não houvesse herdeiro. Assim a ‘Sphera tornava-se um
símbolo de uma espera e de uma esperança à primeira vista impossíveis, pois D.
Manuel era o nono na longa linha de pretendentes ao trono de Portugal.
Porém ele
fora predestinado, desde o seu nascimento em trinta e um de Maio de mil
quatrocentos e sessenta e nove, por uma estranha conjugação de astros e por ser
dia do Corpo de Deus, e o Destino se encarregara de ceifar a vida, das mais
variadas formas, a todos os seus oito rivais na corrida para o trono, antes da
morte – causada, segundo a voz dos rumores, por peçonha – do seu primo e
cunhado, el-Rei D. João II, cinco anos antes, sem ter conseguido legitimar o
filho bastado D. Jorge que, deste modo, nunca lhe poderia suceder. Por isso, D.
Manuel I era muito inclinado à astrologia e, para todas as cousas de peso como
as viagens do descobrimento das Índias, mandava chamar os seus astrónomos,
sobretudo a um judeu de Beja, de nome Abraão Zacut, a fim de saber se lhe
seriam propícias. E jamais olvidaria as suas palavras que eram a razão de estar
agora ali, a despedir aquela Armada:
“–
Senhor, olhei mui bem os astros e os planetas e li neles que Vossa Alteza
descobrirá e subjugará grande parte dessa Índia, em mui breve tempo, porque,
Senhor, o vosso planeta é grande sob a divisa de vossa real pessoa, a esphera,
em que se contém os céus e a terra que serão trazidos a vosso poder, cousa que
não poderia fazer el-Rei D. João II que Deus tem, inda que todo o seu reino
nisso gastara, pois esta empresa está destinada a Vossa Alteza.”
D. Manuel
saiu do seu devaneio para atender aos pilotos mouros enviados pelo rei de
Melinde nas caravelas de descobrir e recebeu as suas homenagens e
despedidas, agradecendo-lhes os serviços prestados e os que ainda iam prestar,
auxiliando os pilotos portugueses na navegação desta derrota quase
desconhecida.
Por
último, entregou ao judeu Gaspar da Gama um alvará de alforria por todo o
socorro que dera na Índia ao Capitão Gama – agora Almirante D. Vasco da Gama,
títulos aliás bem merecidos! – quando este caíra nas garras do Samorim de
Calecut. Assim, por saber falar muitas línguas e pelo seu grande conhecimento
daquelas terras, iria acompanhar Pedro Álvares Cabral para o aconselhar em tudo
o que houvesse mister. Enquanto correspondia às cortesias dos estrangeiros,
revolvia a sua memória, em busca da profecia do Judeu Abraão Zacut sobre a
viagem anterior e que se cumprira totalmente:
“– E
acho que a Índia será descoberta por dois irmãos, vossos naturais, mas não sei
dizer quem são eles, embora saiba que um perderá a vida como paga pelo sucesso
da conquista, porém como está ordenado nos céus, Deus vo-lo mostrará.”
Como o
astrónomo vaticinara, os irmãos Vasco e Paulo da Gama comandaram a pequena
armada que descobrira a derrota para a Índia, a que esta nova e grande armada
vinha dar continuidade. E, também como fora anunciado, Paulo da Gama morrera
antes de chegar a Lisboa! Os mouros desciam para a praia, precedidos de
soldados que abriam caminho à lançada para afastar a multidão que queria ver de
perto os homens negros e pardos, luzindo os ricos vestidos de seda e grossas
cadeias de ouro que El-Rei lhes dera em paga de serviços.
– Olhai
os mouros! Mais parecem príncipes do que pilotos!
– El-Rei
dá presentes de oiro aos inimigos da nossa fé, para fazer vista, com os
tributos que cobra ao povo...
– Toma
tento na língua, que estás a falar traição e inda perdes a cabeça.
Finalmente,
quando os últimos batéis, tendo largado a sua carga humana nos conveses, foram
içados e amarrados nos navios, os oficiais deram as suas ordens e os homens
ocuparam os postos iniciando as manobras da partida. No batel real, enfeitado
como uma sala de trono, o Rei Venturoso incomodado pelo silêncio fez sinal aos
seus músicos para que tocassem notas vibrantes e festivas e escoltou a sua
imponente Armada até à saída da barra, acenando de quando em quando com a mão
esguia e branca onde faiscava um magnífico rubi cor de sangue – o frio coração
do seu poder.
***
De
madrugada, um vento de feição inchou as velas, num estalar de panos como mãos a
aplaudir, nos mastros e mastaréus os cordames gemeram como bordões de guitarra
numa canção de saudade, bandeiras, estandartes e lenços agitaram-se em
frenesim, enviando uma última mensagem. O sentimento dos perigos e da morte,
que não deixaria de escolher alguns daqueles homens, cobriu como um negro véu
todos os corações e um súbito silêncio desceu sobre a praia e as naus, pesado
de agoiros e de lágrimas.
Os
navios da Armada foram-se alongando na distância, diminuindo de tamanho até não
serem mais do que pequenas silhuetas, como miniaturas pintadas nas cartas de marear
a indicar derrotas, desaparecendo por fim na curva subtil do horizonte.
Cap.
III
O Povo Pardo
A
frota navegava com bom tempo ao longo da costa, desfraldadas todas as velas,
rumo às ilhas de Cabo Verde para aí fazer a aguada e seguir para o Cabo da Boa
Esperança. A distância segura uns dos outros, os treze navios deslizavam na
verde imensidão do mar, deixando atrás de si rastos de espumas e golfinhos.
Apenas dez dias de navegação tinham dado a Gonçalo uma ideia do que seriam as
penas do Inferno. Por sorte não enjoara, ao contrário de muitos outros
aprendizes de navegador que haviam passado a primeira semana de viagem a lançar
o estômago pela boca, até não terem mais nada para soltar senão gemidos e
suspiros de angústia, fracos como “mulheres paridas” segundo caçoava o Mestre a
que se juntavam chistes e graçolas dos matalotes endurecidos por outras
viagens.
A nau capitânia era a maior da Armada e levava a bordo
mais de duzentas pessoas das quais,
tirando os principais oficiais, os padres, o cirurgião, os feitores, o barbeiro
e os escrivães (com alojamentos, à parte, no castelo da popa), metade era gente
do mar e o resto gente de armas, amontoando-se, cada um com a sua esteira e a
arca dos parcos haveres, por baixo do tombadilho ou no diminuto espaço deixado
livre pela carga de víveres e mercadorias, gaiolas de galinhas, coelhos e
carneiros (para serem consumidos durante a viagem), peças de artilharia, forno
e tudo o que era necessário para manter a nau em boas condições durante ano e
meio. Só conseguia
melhor espaço para dormir ou o direito a cozinhar os alimentos crus quem
fizesse valer a lei do mais forte. Gonçalo aprendera esta lição logo no
primeiro dia.
***
Após
os escaleres os terem despejado na nau, o Mestre, o Contramestre e o Guardião,
quase sem os deixarem tomar fôlego, tinham-nos feito alinhar no convés superior
à força de ordens berradas, estridências de apitos e palavrões para lhes
ensinarem as três leis da marinharia: trabalho, disciplina e obediência. O bom
labor seria recompensado com alguns privilégios, as prevaricações punidas com
chicote, ferros no porão, trabalho nas bombas ou, em caso de crime de maior
gravidade, morte por enforcamento num dos mastros do navio.
As
tarefas mais duras e sujas da nau estavam a cargo dos grumetes que eram pano
para toda a obra e o Guardião afiançava-lhes que estaria sempre de olho neles,
pois esta era a nau capitânia e não queria ouvir queixas nem censuras de Pedro
Álvares Cabral ou de qualquer oficial. Em seguida mandou-os dispersar e ir ver
dos “alojamentos” que lhes estavam destinados, onde poriam as trouxas e os baús
pouco volumosos.
Gonçalo
tinha sido dos primeiros a embarcar ainda na Ribeira das Naus, no dia oito de
Março, passando a sua primeira noite de viagem para o Restelo onde, na manhã
seguinte, iria participar na cerimónia de despedida. Vendo-o ferido, o Guardião
ordenara ao barbeiro[27]
que cuidasse dele e indicara-lhe um lugar de bom resguardo para dormir, onde o
grumete se instalara e escondera o precioso documento. Assim, desceu ao tombadilho
e retomou o seu posto, estendendo a esteira no chão duro de tábuas. Sentou-se
nela e disfarçadamente meteu a mão no esconderijo, sentindo com alívio que não
lhe tinham tocado.
– Salta daí, rapazola, que esse é o meu
lugar!
O homem tinha uma cara de salteador de estradas ou
corsário, a voz rouca e arrastada era ameaçadora. Trazia um punhal à cintura e
a mão pousada no cabo como um aviso. Sempre a lei do mais forte humilhando os
fracos? Gonçalo recordou o seu juramento – “Nunca mais!”.
– É meu, desde ontem – respondeu –, que
mo deu o Guardião!
O
homem riu, secundado por três companheiros de igual catadura que já tinham
tomado outros lugares, desalojando os seus ocupantes mais moços, sem que
ninguém ousasse protestar.
– O
gatinho é assanhado, não há dúvida! Esse arranhão na cara, fez-to algum
gatarrão pra t’ensinar a respeitar quem manda? Parece que ainda não aprendeste
a lição! Salta mas é daí antes qu’eu t’arranque as unhas.
– Só morto! – berrou Gonçalo com fúria.
– Lá
por isso, Assanhado, eu faço-te a
vontade.
O
homem, rindo sempre, lançou-lhe a mão ao tornozelo e, arrancando-o da esteira,
arrastou-o pelo soalho. A cabeça do moço bateu contra uma trave, atordoando-o.
– O
lugar é do rapaz, nã o ouviste?
Se buscas querela, aqui me tens que sou melhor adversário pra ti qu’um rapazola
magricela, mesmo assanhado.
Mateus!
Embora de olhos cerrados e meio desacordado, Gonçalo reconheceu a voz do amigo.
O ferreiro pousara a mão enorme no ombro do arruaceiro que se virou em fúria.
Fizera-se silêncio sob o tombadilho e todos os olhos se cravaram curiosos e
excitados no grupo. Aos dezoito anos, Mateus era alto como uma torre e forte
como um touro, por isso, ao ver a cabeça do novo adversário dois palmos acima
da sua e uns músculos que pareciam estoirar a camisa, o homem empalideceu e
largou Gonçalo que se ergueu ainda tonto; os três companheiros do rufião
recuaram.
– Se
assim o dizes… – o sorriso do malandrim era uma careta de ódio – buscarei outro
pouso, pois não tenho razão de querela contigo.
–
Busca-o longe daqui e leva os teus amigos, que todos estes postos já têm donos.
Os
quatro desordeiros entreolharam-se e, dando meia volta, afastaram-se remordendo
ameaças, sob um coro de risos e palmas dos novatos ao generoso gigante que os
defendera.
***
Navegavam
há já treze dias com muito bom tempo, tirando um arreliador dia de calma, a
catorze de Março, passado inteirinho sem as naus se moverem, a quatro léguas
das Canárias, as ilhas na posse dos reis de Castela, por onde se passava antes
de chegar a Cabo Verde. Os matalotes bons nadadores gozaram o seu tempo livre a
atirar-se dos barcos para o mar, fazendo apostas e desafios a ver quem dava os
saltos do ponto mais alto dos mastros. Gonçalo foi um deles e quase se esqueceu
dos músculos doridos e das mãos feridas, ainda mal calejadas, em cinco dias de
rudíssimas tarefas, principalmente no manejo das cordas e cabos, empoleirado
nos altos mastros num equilíbrio de cegonha, sem olhar para baixo por medo das
tonturas que podem fazer qualquer um estatelar-se nas tábuas do convés.
O
pior fora depois dos mergulhos, com a coceira do sal na pele e sem água doce
para se lavar, pois a água era preciosa demais para se desperdiçar em lavagens
de corpos e de roupa … Mas enquanto durara a diversão... Como Mateus não sabia
nadar, ficara a vê-lo da amurada dando palmas e gritos de incitamento sempre
que o amigo saltava. No convés, um numeroso grupo pouco amigo de banhos buscava
outros prazeres com risos e ditos de “Auga
só prós pexes, qu’eu cá nã tenho guelras”, “Hoje nem é dia santo e a Páscoa
inda vem longe, “Home encharcado é home resfriado”. Porém, os jogos de azar
eram proibidos nas naus e os padres punham-se logo a farejar mal lhes cheirava
a jogatina, se viam um ajuntamento de homens sentados a um canto, ouviam brados
mais fortes ou escutavam alguma praga mais acesa e os prevaricadores eram logo
multados, em dinheiro ou na ração de vinho, quando não sofriam castigo maior em
tarefas e trabalhos, sobretudo na nau capitânia.
–
Vamos a uma partida de fito?
–
Outra vez, home?
– Se
caçássemos uma toninha, podíamos fazer uma tourada!
Era
costume, como sabiam os mais experimentados nestas derrotas para África, quando
se pescava uma toninha ou um tubarão, quebrarem-lhes os olhos e lançarem-nos no
convés, aproveitando os seus saltos e estrebuchamentos para fazer uma
garraiada, toureando-os com capas e panos até à morte e mal paravam de se mexer
atiravam-se as carcaças de novo para o mar, pois logo apodreciam com o calor e
empestavam a nau com o seu mau cheiro.
– E
onde tás tu a ver toninhas ou tubarões neste mar de calmaria, ó Manel?
E
foi então que o marceneiro José Brás teve uma lembrança de truz e, num abrir e
fechar de olhos, fez com umas tiras de madeira e uns chifres ocos onde
costumava guardar vinho, uma armação em tudo semelhante à de um touro e,
encaixando-a nos ombros e pescoço, dobrou o corpo e começou a imitar o bicho,
escavando o madeirame do convés e arremetendo contra os homens que fugiam rindo
ou volteavam panos vermelhos e pedaços de velame na sua frente enquanto
gritavam:
– Eh, touro! Eh, touro lindo!
– Aaah! Ah-aaah!
Touro bravo! Olé!
O bicho corria e tropeçava, enganado pela
faena e os matalotes bradavam em coro: Oléeee!
Olééééeeeee!
O
Capitão-mor e o piloto Pêro Escobar saíram do castelo da popa, curiosos de
tanta grita e arruído e os homens pararam imediatamente, envergonhados, mas
Cabral mandou-os continuar com a brincadeira, lançando mesmo um sonoro Olé, a um passe mais valente.
–
Fazei-lhe uma pega de caras – disse um bombardeiro. – Toirada sem uma pega nã é toirada!
Mateus
tinha deixado a amurada e aproximara-se da arena formada pelo círculo dos
marinheiros e soldados. Oito mocetões prepararam-se para pegar o toiro à unha.
– Eh, rapazes, façam-lhe a pega e botem
o toiro à auga!
–
Mas o toiro há-de ser aqui o Campanário
que tem mais corpo do qu’eu e vos pode fazer frente – e o marceneiro, antes de
Mateus ter tempo de reagir, colocou-lhe a armação de madeira nos ombros.
Divertido,
o gigante entrou no jogo, dobrando-se e arqueando o corpo formidável, pôs-se a
resfolegar, dando patadas no convés de fazer estalar as tábuas e preparou a
investida. Os sete forcados puseram-se
em fila atrás do seu caporal que, de mãos na cintura e entesando o corpo
provocador, citou o touro:
–
Eh, toiro! Eeeeh, bicho feio! – avançou e recuou uns passos, gingão e
desafiador, e citou de novo.
Via-se
que o Barranquenho era entendido
naquelas lides e as apostas começaram a subir. De súbito o bicho arrancou em
corrida desatada, colhendo o caporal de surpresa e lançando-o pelo ar, ainda
agarrado aos chifres que se soltaram com a força do embate, por sobre a amurada
de mergulho no mar calmo como um lago. Os restantes sete valentões jaziam num
monte, aturdidos e pisados como se uma manada de touros bravos lhes tivesse
passado por cima. Pedro Álvares Cabral disse ainda a rir:
–
Desta vez venceu o touro. Guardião, dá-lhe à ceia ração dobrada.
***
O Assanhado
e o Campanário passavam juntos todo o tempo que podiam, partilhando o
trabalho e a amizade. Desde a primeira noite tinham ganho o direito às suas
alcunhas e nunca mais ninguém lhes perguntara o nome. Campanário assentava como uma luva a Mateus, alto qual torre de
igreja e com uma voz a ressoar igual a sino de aldeia. E o nome de Assanhado que o rufião dera a Gonçalo
por troça era agora proferido pelos companheiros com respeito, por ele apesar
de franzino não se ter acobardado face aos quatro malandrins. Gonçalo pagara a protecção
de Mateus cuidando dele durante a primeira semana de viagem, porque o
corpulento mocetão… enjoava a cada balanço mais forte do mar, passando o tempo
todo na amurada a vomitar as tripas, em arrancos violentos de estremecer a nau,
que o deixavam fraco como um menino de colo.
No
Domingo de vinte e dois de Março, tinham ouvido missa rezada pelo próprio Frei
Henrique a que assistira o Capitão-mor com todos os oficiais e os servidores da
Fazenda d’El-Rei. Com a Quaresma a aproximar-se, os padres rezavam cada vez
mais missas e novenas e isso até era bom, porque dava repouso aos corpos
cansados e fazia passar o tempo.
–
Terra à vista! – gritou o grumete de serviço no cesto da gávea, com voz
esganiçada de entusiasmo. – Terra à vista!
– É
a ilha de São Nicolau, chegámos a Cabo Verde – disse Pêro Escobar, o piloto que
mais vezes por ali passara, levando os descobridores em derrotas por ele só
desenhadas nas cartas de marear dos seus sonhos de navegador.
Os
homens correram à amurada, falando todos ao mesmo tempo. Iam talvez poder pisar
terra firme, pois ali se costumava fazer a aguada, despejar os barris da água
choca do calor e enchê-los com a límpida água das ilhas, carregar madeiras e
alimentos frescos, enfim, estender as pernas e livrar-se por algumas horas do
espaço apertado e malcheiroso da nau.
O
piloto começou a dar ordens e os homens retomaram os seus postos para as
manobras da passagem no canal entre as ilhas de Santiago e do Fogo. Quase ao
raiar da manhã, um vento súbito e contrário levantou-se, enredando as velas nos
mastros e enxárcias[28],
de tal maneira que não as podiam baixar. O piloto gritava da proa ordens para o
Mestre:
– Baixem as driças! Recolham as vergas!
Os
marinheiros estremunhados corriam aos seus postos e, sob as ordens do Mestre e
do Contramestre, procuravam a todo o custo amainar as velas, mas o pé de vento
era fortíssimo e tornava qualquer manobra impossível.
– Atenção às outras naus. É preciso manter as distâncias ou ainda nos
abalroamos uns aos outros – disse o
Capitão para o piloto que logo bradou ao homem do leme:
– Não percas de vista o resto da frota! Custe o que
custar, homem, segue em frente!
O vento uivava como lobo na serra e os marinheiros
aterrorizados viam-se lançados para a frente a dançar nas ondas uma dança de
loucos. Rezavam e suplicavam:
– Perdoai-nos, Senhor, os nossos pecados!
– Senhora dos Navegantes, vinde em nosso socorro! Avé Maria, cheia de
graça…
As naus pareciam troços de cortiça lançados numa
enxurrada e os homens mal as podiam governar, com o vento sempre a crescer. A
pouca claridade da lua, em quarto minguante, fazia-os temer a proximidade das
ilhas e as rochas escarpadas do Fogo onde poderiam despedaçar-se. Pedro Álvares
Cabral e Pêro Escobar mostravam-se tranquilos e esta sua serenidade foi-se
estendendo aos homens que, envergonhados do terror da sua primeira tempestade,
calaram as rezas, lançando-se às tarefas com redobrado vigor. Esforçavam-se por
manter aceso o facho da nau capitânia a fim de indicar o caminho e a distância
aos outros navios, para a frota não se dispersar. Mas era mais um perigo a
temer, pois tal ventania podia pegar o fogo à nau.
***
Era
manhã quando o vento acalmou tão de súbito como começara e o Capitão-mor deu
ordem para lançar âncora na baía e aí esperar o resto da frota. Uma a uma foram
chegando, naus e caravelas, mais ou menos maltratadas, mas nada de tão grave
que não pudesse ser remendado na ilha e prosseguir viagem. Todas menos a de
Luís Pires, perdida para sempre apesar dos esforços para a acharem.
–
Não há rasto da nau, meu Capitão, não encontrámos nada.
–
Que será feito deles? Uma nau não desaparece assim, sem mais nem menos!
– É
muito estranho, de verdade. Se a tempestade os afundou, mesmo que não ficasse
ninguém com vida tinha de haver escolhos, pedaços de madeira, panos, parte da
carga...
–
Depois da tempestade, a cerração que desceu sobre o mar não deixava ver nada,
nem sequer os lumes de aviso.
– É
cousa rara, não tem dúvida! – e alguns homens persignaram-se como para afastar
o azar e o mau agoiro.
Para impedir que receios e
superstições se espalhassem pela armada, o Capitão-mor disse aos homens:
–
Por certo se afastaram em demasia ou sofreram algum estrago maior e, com medo
de já não nos alcançarem, decidiram volver ao Reino – e deu por terminado o
assunto.
Os novatos, passado o perigo,
não falavam de outra coisa, contando como tinham sido heróis, ajudando a salvar
a nau. Só o Campanário não dera por nada. Enjoado de morte, passara toda
a tempestade no porão a vomitar para dentro das gaiolas das galinhas.
***
O
porto da ilha não era grandioso nem sequer muito importante, mas fervilhava de
animação graças ao intenso comércio de escravos vindos das terras da Guiné com
destino ao Reino e à Europa. A chegada de doze navios para fazer a aguada
trouxe ao cais uma multidão incontável de gente, pois ninguém queria perder um
acontecimento nunca antes visto.
–
Mas pra onde vai tanta naviarra?
–
Será que vão combater a moirama?
– A
mim, tanto se me dá pra onde vão, desde que desembarquem aqui, pra fazer a
aguada e gastar as soldadas.
– Só
pensas em tratos e resgates, home de Deus!
– E
tu? Já aí vens de cestas cheias pra vender e inda falas?
–
Não se amofinem, que chega pra todos. Passarão de mil homens, em tantas naus e
caravelas...
Quando
os homens saíram dos escaleres, na praia, foram logo rodeados por gente curiosa
que lhes oferecia jarros de vinho e os enchia de perguntas:
–
Eh, amigos, vinde beber um trago connosco e dizei-nos pra onde ides, se vossa
derrota não for segredo bem guardado.
–
Vamos até às Índias, a ver das especiarias.
–
Jesus! Viagem comprida e de muito perigo!
–
Levamos embaixada d’el-Rei D. Manuel para o Senhor da Índia.
– E
quem vai de Embaixador?
–
Pedr’Álvares Cabral, fidalgo da casa d’el-Rei.
Gonçalo
e Mateus entraram na Igreja de Nossa Senhora, na praça principal, rodeada de
bonitas casas feitas como as de Portugal e rezaram uma oração em agradecimento
aos céus por terem sido poupados pela tempestade. O Campanário, ao
sentir os pés assentes em terra firme, recuperara logo o apetite e a boa
disposição e quisera ir comer marisco ao cais nas tendinhas das mulheres
negras.
Muitos
dos companheiros aproveitavam aquelas horas de lazer para comprar produtos
frescos, sobretudo nozes de coco que ali eram grandes e baratas e serviam,
durante uma viagem assim longa e penosa, de alimento (o delicioso miolo branco)
e de refresco (um sumo em tudo parecido com o leite). O calafate Luís Tomé, que
Gonçalo conhecera em Lisboa à entrada do armazém da Casa da Mina,
juntou-se-lhes enquanto comiam sentados nos rolos de cabos do cais e praticaram
animadamente sobre a sua nova vida de mareantes já calejados por uma
tempestade.
Da
nau negreira acabada de surgir, tinham aportado os escaleres a transbordar com
a negra carga humana: quase nus, imundos e presos uns aos outros pelo pescoço
com grossas cordas, homens, mulheres e crianças formavam um rebanho miserável
que os contratadores, armados de chicotes, juntavam no cais com gritos e pancada
à medida que os batéis os descarregavam. Medo, dor e humilhação, pensou
Gonçalo, sempre os mais fortes abusando dos mais fracos! Um dos prisioneiros
que vinha apartado dos outros, com correntes de ferro no pescoço, pulsos e
tornozelos, foi violentamente empurrado pelos negreiros, mas manteve-se de
cabeça erguida, desafiando os algozes.
–
Como é altivo! Talvez seja um chefe ou um príncipe… – exclamou cheio de pena.
–
Pois agora inda é menos qu’ um
animal. – e o calafate cuspiu para o chão com desprezo. – É negócio sujo. Os
negreiros vão levá-los até ao entreposto onde lhes darão dois ou três dias de
repouso e alguns cuidados para poderem ser vendidos a melhor preço.
Depois
de limpos da sujidade e tratados das chagas e doenças apanhadas durante a viagem,
por virem amontoados como gado no porão, os arrematantes escolhiam as melhores peças para serem leiloadas à parte ou
oferecidas aos clientes mais ricos. Os restantes seriam agrupados em lotes,
apartando os maridos das mulheres e os filhos dos pais e das mães, com gritos e
prantos de dor e desespero incapazes de comover os corações de pedra dos
negreiros. Gonçalo já vira cenas destas em Lisboa e sentira-se revoltado:
–
São seres humanos como nós, Luís Tomé! Porque fazemos isto?
– Os
ricos querem ter quem lhes faça o trabalho e lhes ganhe mor riqueza…
–
Volvamos às naus, que se faz tarde – propôs o Campanário, com um
suspiro.
No caminho passaram pelo Pelourinho, ali posto
desde o tempo da fundação da povoação. Suspenso de uma argola de ferro, um
negro enorme jazia semi-morto, a pele arrancada pelas cinquenta chicotadas do
castigo deixava ver, no dorso em carne viva, os fundos golpes enxameados de
moscas.
***
Foi breve a paragem, pois não levavam muito
tempo de navegação e o que mais depressa se estragava era a água que ficava
amarela, com mau sabor e cheia de bichos, fazendo os homens adoecer de febres
terríveis que chegavam a matá-los. Embarcaram algumas viandas frescas, frutos e
produtos das hortas que os colonos cultivavam, procurando criar um mundo português
nestas ilhas de África cuja natureza indomável parecia querer escorraçar os
intrusos. Cabral determinara, por conselho de Pêro Escobar e dos outros
pilotos, navegar mar dentro, bem afastado de terra, a fim de evitar as
calmarias da Guiné que lhes poderiam impedir o caminho para o Cabo da Boa
Esperança. Por isso tinham-se alongado cerca de seiscentas e cinquenta léguas
da ilha de São Nicolau e há já um mês que os homens não viam sombra de terra:
– Tanta água ‘tá quase a
dar comigo em doudo!
– Má
hora saí de casa! Antes me queria ver co’a minha mulher a rezingar, do que
neste caixão malcheiroso.
–
Ides assi tão fartos em começos de viagem?! Grande conta me dais de vossa
fortaleza e ânimo! – O Mestre
andava preocupado, pois se já estavam neste estado com apenas mês e meio de
viagem, como seria ao fim de seis, oito meses de navegação? – Sois
machos de pêlo na venta ou donzelas delicadas?
Entrava-se agora nas
oitavas da Páscoa[29] e
os padres redobravam de zelo, falando em sacrifício e perdão dos pecados,
fazendo confissões e rezas colectivas com todos os homens ajoelhados no convés
superior e até uma procissão para acalmar um pouco os ânimos. Mas, mesmo assim,
não impediam as rixas frequentes que estalavam entre os matalotes e os
soldados, ainda mais impacientes e desesperados por não ser o mar o seu campo
de batalha. O trabalho na nau estava a ficar cada vez mais pesado,
insuportável. Era difícil manter limpo e habitável um navio com tanta gente e,
como não se podia desperdiçar a água doce, usava-se a água do mar para lavar
roupas, conveses e porões, todavia o resultado deixava muito a desejar
O porão tornara-se um
inferno ou calvário de sofrimento e o Guardião só à força de ameaças e mesmo de
pancada conseguia que os grumetes lá entrassem para fazer a limpeza. As fezes e
urina dos animais e também dos homens que ali se aliviavam empestavam o ar com
um cheiro nauseabundo e o bojo da nau era agora um viveiro de piolhos, pulgas,
percevejos, baratas e ratazanas. E, sendo ali o lugar de armazenagem dos
víveres, estes começavam a apodrecer e a encher-se de bicharada.
***
Quarta-feira, vinte e dois
de Abril, calhara ao Assanhado o
quarto de vigia das horas de véspera[30]
no cesto da gávea. Era um privilégio ganho por bom comportamento e… por saber
ler. Poupara ao Guardião um vexame público, quando ele trocou os caixotes que
tinham de abrir e Gonçalo, sem os outros grumetes notarem, lhe leu os dizeres
escritos a tinta preta nas madeiras. O homem não esquecera o favor e tomava-o
sempre como ajudante nas tarefas que pudessem implicar qualquer sorte de
leituras e registos.
No frágil ninho de cegonha, no alto mastro da
nau, Gonçalo entreabria o punho cerrado da sua revolta e deixava respirar o
coração, por instantes liberto naquela imensidão, como se estivesse suspenso no
ar e o único limite avistado fosse aquela linha infinita onde o verde do mar e
o azul do céu se confundiam. Só aí se permitia a ternura da saudade e a memória
da mãe. Nesse mês
e meio de vida no mar ganhara corpo, com os músculos desenvolvidos à força de
lavar conveses, arrastar sacos e caixotes que pesavam arrobas, subir com a
agilidade de um macaco às pontas dos mastros para atar e desatar o cordame das
velas. E fortalecera o seu espírito e a sua vontade. Fizera-se um homem!
Tornara-se
amigo de alguns soldados e estes, vendo o seu interesse pelas armas,
entretinham os momentos de ócio a ensiná-lo a disparar os arcos e as bestas e
até o Mestre-de-armas António Ribeiro já o
iniciara no uso da espada, muito entusiasmado com os progressos rapidíssimos do
seu jovem aluno, dizendo-lhe para deixar a vida parada do mar, mal chegasse à
Índia, e se alistar na infantaria que logo haveria de alcançar fama e fortuna.
Gonçalo procurava treinar-se no uso destas armas, quando tinha qualquer momento
livre, pois queria estar preparado para o que desse e viesse. Nos olhares dos
quatro rufiões, a espiá-lo noite e dia, não via só ressentimento pela perda de
um lugar para dormir ou raiva por terem perdido a face, havia neles algo de
mais ameaçador e perigoso. A cara do Gingão
era-lhe familiar, mas não conseguia lembrar-se de quando ou onde o encontrara.
Na noite da tempestade alguém lhe havia passado revista
ao saco e ao lugar onde dormia, porém tendo o cuidado de deixar tudo como
estava. Seria a carta de marear o que buscavam? Por sorte, no segundo dia de
trabalho na nau, encontrara um esconderijo muito mais seguro para onde tinha
mudado o seu tesouro. Com Mateus por perto não se atreviam a tentar qualquer violência
contra ele, mas Gonçalo sentia-os à espreita…
A
mancha escura, ao longe, alastrava no mar como uma pequena nódoa de azeite e o
grumete quase saltou do cesto da gávea. Era a terra anunciada há já dois dias
pelas plantas a boiar e os bandos de fura-buchos a sobrevoar a nau. E logo no
seu quarto de vigia! Pôs as mãos em funil diante da boca e soltou a plenos
pulmões para o formigueiro azafamado dos seus companheiros de aventura, na
tolda, o brado que mais desejara lançar como o corsário dos contos que seu pai
lhe contava:
–
Teeeeeeerra! Teeeeeeerra à viiiiiiiiiiiista!
Foi
um rebuliço na nau, de correrias à amurada, gritos e barretes lançados ao ar.
Avistava-se já um grande monte e terras de cerradas florestas, bordeando praias
de areia muito branca.
– Que terra é esta? É uma ilha ou terra
inteira?
– Já muito naveguei e nunca vi tal
lugar.
A
mesma conversa tinha o Capitão-mor com o seu piloto, mas Escobar também não
sabia a resposta. Cabral mandou fazer sinais às outras naus para lançarem a
âncora e convocou todos os capitães e pilotos a conselho. Os escaleres baixaram
das naus e caravelas quase em simultâneo, acostando pouco depois à nau
capitânia e os oficiais subiram imediatamente a bordo.
Ninguém
reconhecia aquela costa, nem os mais experimentados navegantes, só Duarte
Pacheco Pereira, homem de confiança do falecido rei D. João II, não se
pronunciou, apesar de todas as missões de descobrimento feitas ao serviço do
seu Senhor. Guardava um sorriso misterioso nos lábios. Era, então, uma terra
novamente descoberta para a coroa de Portugal! E apenas a um mês de distância
de Cabo Verde, cabendo bem dentro dos limites portugueses do Tratado de
Tordesilhas assinado por D. João II com Fernando e Isabel de Castela, em 1494.
Um
milagre da Páscoa, sem dúvida, por isso se haveria de chamar Terra da Vera Cruz
e aquele alto cerro Monte Pascoal! Os escrivães registaram a descoberta, os
pilotos marcaram a sua posição nas cartas de marear e os homens tiveram uma
ração extra de aguardente para festejar o acontecimento. O grumete que avistara
a terra, pela vez primeira, receberia mais tarde as suas alvíssaras[31].
Para saber se era terra firme ou uma grande ilha foram cortando ao longo da
costa todo o dia, avistando grandes serranias e largos rios, além de formosas
enseadas que o Capitão-mor considerou mais seguras para surgir[32]
e ao sol-posto fez sinal com um tiro de berço[33]
e todos os navios lançaram âncora para passar a noite.
***
Na
manhã de quinta-feira, avistaram muitos homens nus ao longo da praia e Cabral
mandou convocou de novo todos os capitães a conselho, sendo de pronto
obedecido, com o movimento dos batéis a causar espanto aos indígenas que
corriam e gesticulavam, apontando para os barcos e para o céu. Cerca das onze
horas, Nicolau Coelho foi mandado a terra no seu esquife a explorar a boca do
rio onde tinham ancorado e tentar chegar à fala com os naturais. Quando já
estava quase sobre a praia, o capitão viu avançar para o batel um grupo de
homens nus, de cor avermelhada, armados de arcos e flechas. Os dez lanceiros e
besteiros que levava consigo empunharam as armas prontos a disparar.
– Andam todos com as
vergonhas[34]
ao léu!
– Olhai a cor da pele deles! Sou eu que estou a ver mal ou
eles são pardos[35]?
– Sim, têm a pele
avermelhada! Serão gente ou diabos?
– À cautela, mando já um pró Inferno donde veio! – e o soldado preparou-se para disparar
a seta.
– Quedos! – ordenou o capitão. – Não façais nada que os
possa amedrontar.
E Nicolau Coelho ergueu-se no batel com grandes sorrisos e
muitos acenos de cabeça e de mãos, fazendo sinal às criaturas pardas e nuas
para pousarem os arcos na praia. Os lanceiros baixaram as lanças e imitaram os
gestos do capitão, enquanto os besteiros mantinham as armas apontadas. Os
gentios lançaram os arcos para a praia e falaram aos portugueses, todavia nem
Nicolau, nem o língua[36]
conseguiram percebê-los ou fazer-se entender por eles. Então, o capitão tirou a
carapuça e atirou-a ao homem que estava mais perto e dois soldados fizeram o
mesmo com um barrete vermelho e um sombreiro preto, logo apanhados no ar por
outros dois homens nus com muitos risos e acenos. O primeiro nativo lançou, por
sua vez, para dentro do batel o toucado de penas que tirou da cabeça e um fio
de continhas brancas. Como não podiam desembarcar por o mar quebrar rijo na
praia, Nicolau deu ordem para voltar à capitânia, a fim de fazer o seu relato
ao Capitão-mor e a todos os capitães que na amurada tinham seguido o seu feito.
***
Na manhã de 24 de Abril, como o vento sueste trouxera na
véspera fortes chuveiros e quase fizera dispersar as naus, os pilotos
aconselharam Cabral a levantar âncora e fazer vela ao longo da costa, a ver se
achavam alguma baía segura para aí
surgir e tomar água e lenha. O Capitão-mor concordou e enviou adiante as
caravelas pois, sendo mais pequenas, eram capazes de navegar chegadas a terra.
Enquanto se afastavam, viram na praia cerca de setenta homens todos nus,
sentados perto do rio, muito curiosos e assombrados de ver sair dos ventres de
um bando de pássaros gigantes uma gente tão esquisita. As naus seguiram no
rasto das caravelas e foram achá-las ancoradas dez léguas mais abaixo, num
recife com um bom porto a que o Capitão-mor deu o nome de Porto Seguro e aí
amainaram antes do sol posto.
***
Afonso Lopes, o sota-piloto de Cabral, enviado num batel a
sondar a baía para ver até onde a frota podia entrar, voltou à nau com uma boa
surpresa para o Capitão-mor.
– Olhai o Afonso
Lopes, que boa companha traz!
– Mas vêm pelados,
tal qual Deus Nosso Senhor os deitou ao mundo!
– E as mulheres,
Afonso Lopes, tamém andam em pêlo, assi, sem tapar as vergonhas?
– Por qu’ é que nã trouxestes antes mulheres?
– Chegai-vos pra lá, deixai-me ver! Parecem
pássaros, assi enfeitados de plumas.
– Tomai tento – disse o Mestre já cansado de tanta
algazarra. – Com tal zanguizarra inda
assustais as criaturas.
– Que feios que são,
com aqueles ossos metidos nas beiçolas!
Os dois moços gentios, agarrando-se aos cabos, amarinharam
pela nau como se toda a vida não tivessem feito outra coisa. Não pareciam
assustados, apenas surpreendidos e maravilhados com tanta novidade trazida por
um povo muito estranho, coberto de peles ainda mais raras. Como a multidão o impedia de ver os
recém-chegados, Gonçalo amarinhou pelos mastros e socorrendo-se do emaranhado
dos cabos que tão bem aprendera a conhecer, passou por cima das cabeças dos
companheiros e deu uma das suas ágeis cambalhotas de saltimbanco, vindo
aterrar mesmo aos pés do mais velho dos
homens pintados.
O visitante sobressaltou-se e recuou, mas Gonçalo sorriu-lhe
e, antes de alguém o afastar, ofereceu-lhe um aro de latão que o indígena
aceitou encantado e logo enfiou no pulso. Afonso Lopes não interrompeu a
inesperada cerimónia de boas-vindas, pois era a favor de tudo o que
tranquilizasse aquele estranho povo e o moço mostrara ter miolos e
sensibilidade. Nesse momento o homem da selva levou a mão à cicatriz no rosto
do grumete e tocou-lhe com suavidade. Em seguida tirou o toucado de penas e
Gonçalo pôde ver na sua fronte, quase no mesmo sítio, uma cicatriz em tudo
semelhante à sua.
– Ó Assanhado, aí tens o teu irmão gémeo! – gritou um
dos soldados, arrancando um coro de gargalhadas em redor.
Mas o moço nem os ouvia, fascinado por
aquele ser tão diferente de si mas ao mesmo tempo… tão parecido. Apesar do osso
atravessado no lábio inferior de lado a lado, não lhe parecia feroz nem
medonho. Trazia na pele cor de cobre um cheiro misto de floresta e maresia que
parecia purificar a nau, um odor de liberdade e inocência. Como se lhe lesse os pensamentos, o
indígena tirou do ombro o arco e o carcás com as longas setas e ofereceu-lho,
levando a mão à sua própria cicatriz e de novo à do grumete. Guerreiro ou
caçador, considerava-o seu igual e Gonçalo sentiu-se orgulhoso pela admiração,
embora imerecida, do homem da floresta.
– Com que então, irmãos de sangue?!
– Ó Assanhado, pede-lhe pra te levar à caça, a ver se trazes carne fresca que já estamos
fartos de biscoito[37].
– Um tassalho de veado ou porco montês assado vinha mesmo a
calhar prá ceia! Mas tamém me contento c’uma lebre ou coelho!
Afonso Lopes pôs fim à paródia fazendo
sinal aos visitantes para o seguirem, pois o Capitão-mor estava pronto para os
receber. Cabral, ricamente vestido e adornado com o seu colar de ouro de
embaixador, estava sentado numa cadeira alta no centro de uma enorme tapeçaria
estendida diante do castelo da popa, com
todos os capitães e principais oficiais da Armada à sua volta, sentados no chão
sobre o tapete como se fossem assistir a um sarau da Corte. E Gonçalo, aproveitando a quebra no ritmo de trabalho, pois anoitecia
e estavam ancorados num mar sereno como um lago, esgueirara-se para a popa e
arranjara um recanto bem perto da cena de onde podia mirar e ouvir tudo sem
ninguém dar por ele.
O grumete sorriu ao ver
o estranho e cómico quadro. As tochas acesas na coberta faziam sobressair a cor
avermelhada dos homens da floresta e as formosas pinturas nas suas peles nuas
contrastavam com os pesados brocados e veludos nos corpos suados dos capitães.
Gonçalo achava-os magníficos, de corpos perfeitos e sem nenhum pêlo, os cabelos
corredios e tosquiados de uma tosquia alta no toutiço, rapados por cima das
orelhas, sem barba e as pálpebras e sobrancelhas pintadas de branco, azul e
vermelho.
Mostravam-se
livres e altivos como príncipes, pois nem saudaram o Capitão-mor nem deram
mostras de acatamento ou de temor, mirando aquela coisa nova e formidável que
era a nau sem uma palavra. Apenas apontaram para o colar de Cabral e logo para
terra, fazendo os capitães murmurarem entre si “Ouro! Ouro! Eles estão a
dizer que também têm ouro!” A Gonçalo, pelo contrário, pareceu estarem os
nativos a pedir para o Capitão-mor lhes entregar o colar a fim de o levarem a
terra, por certo para o oferecer a algum chefe ou deus da sua crença. Mas, como
tantas vezes falara seu pai, os oficiais pareciam sofrer da terrível ganância
dos homens, levando-os a ver naquilo que é, apenas aquilo que desejam! Os
línguas falaram-lhes arábico e várias falas de negros mas não houve qualquer
entendimento.
– Mostrai-lhes algumas cousas
de Portugal! – disse o Capitão-mor. – E dai-lhes de comer e beber.
Os matalotes espreitavam a cena
dependurados dos mastros e alguns deles apressaram-se a obedecer com grandes
risadas. Trouxeram um carneiro e os dois homens mal fizeram caso do bicho,
porém uma galinha quase os fez saltar pela amurada de tanto medo.
– Nunca viram uma galinha! – e
os homens perdiam-se de riso. – São mesmo selvagens!
– Temos muito que lhes ensinar!
Gonçalo deixou o esconderijo, tirou
das mãos do marinheiro a galinha a esvoaçar e cacarejar como se estivesse a ser
degolada e, aquietando-a com festas e palavras, acercou-se do moço que lhe dera
o arco e entregou-lhe a ave com um gesto amigo. Já sem receio, o indígena pegou
nela e mostrou-a ao companheiro e ambos a estiveram mirando largo tempo com
muito espanto e surpresa. Nesse momento, o pequeno papagaio Almirante, a mascote da nau que
raramente largava Gonçalo, veio pousar-lhe no ombro.
– Ará! – disse seu novo amigo de pele vermelha sorrindo e tomou a ave
nas mãos, acenando para terra como a dizer que ali havia muitas.
A uma ordem de Cabral, os
marinheiros trouxeram aos hóspedes pão e peixe cozido, fartéis, mel e figos
secos mas eles, mal provavam as iguarias, lançavam tudo fora e não conseguiram
comer quase nada.
– Ora bem! Suas Senhorias têm
má boca! – disse o agastado cozinheiro que viera espreitar.
– São muito fidalgos! Devem
estar mal habituados…
– Desperdiçar é que não! – e um
rapazelho enfiou na boca os restos dos fartéis que os gentios tinham lançado
para dentro da bacia.
Então o Capitão-mor mandou
servir vinho a todos os capitães e aos dois convidados e ergueu-se com muita
solenidade para fazer um brinde, levando primeiro a sua taça aos lábios para
eles verem como se fazia. Os indígenas imitaram-no, tomando um grande gole e de
imediato, com uma careta de nojo, perante o pasmo e horror de todos os
portugueses, cuspiram o vinho tinto acertando em cheio na casaca de veludo de
Pedro Álvares Cabral.
– Por esta é que o Capitão-mor
não esperava!
– Se fosse um de nós… era
castigo certo!
– Olhai ao que um home se sujêta por estas terras sem
Deus!
– Mas lá que teve graça…
Muito
mareados, os homens da floresta logo se deitaram na alcatifa para dormir. O
Capitão-mor, enquanto enxugava a casaca com um lenço, mandou pôr-lhes umas
almofadas altas por baixo da cabeça que eles aceitaram, ajeitando-as de modo
não quebrar os toucados de penas. Gonçalo veio lançar-lhes um manto por cima e
os dois moços daquele mundo novo adormeceram na nau dos conquistadores,
confiantes e incautos, como se toda a vida os tivessem conhecido.
Cap. IV
Uraçá
Sábado
de manhã, no dia vinte e cinco de Abril, Pedro Álvares Cabral deu ordens de
fazer vela e procurar a entrada do Porto Seguro – o nome dado por todos à belíssima
baía daquela nova terra que haviam achado para a Coroa Portuguesa e onde se
poderiam bem abrigar mais de duzentas naus – para aí levar os navios e, como as
águas eram profundas de cinco ou seis braças[38], lançar âncora a pouca
distância da praia.
Os
capitães vieram logo ter conselho na nau capitânia e decidiram que Nicolau
Coelho, Bartolomeu Dias e Pêro Vaz de Caminha iriam devolver os dois indígenas
à praia, com presentes para fazer amigos. Levariam ainda o degredado Afonso
Ribeiro, criado de D. João Telo, para ficar na terra a viver com eles, a fim de
aprender os seus usos e língua e, também, como os moços selvagens haviam
mostrado simpatia por Gonçalo procurando a sua companhia ao despertar, o
Capitão-mor deu ordem ao grumete para se juntar ao grupo.
Assim,
cada um dos nativos recebeu uma camisa nova, uma carapuça vermelha, um rosário
de contas brancas que eles enrolaram à volta do braço como uma pulseira e
alguns guizos e campainhas de latão que os encheram de contentamento e todos os
portugueses se chegaram à amurada para os ver embarcar e despedirem-se deles,
com grande algazarra:
–
Adeus, rapazes! Voltem sempre!
–
Na próxima visita tragam as vossas irmãs.
– E
as primas também...
Com
muita pena de não os poder acompanhar, o Campanário assistiu à partida do escaler,
transportando o seu amigo Assanhado para uma aventura digna de um
explorador.
– Vê
lá no que te vais meter! E não andes sozinho com eles! – recomendou da amurada.
–
Cala-te com isso, home, inté pareces a mãe do rapaz! – caçoou um matalote. –
Ele já é crescidote e há-de dar conta do recado.
Quando
os batéis chegaram a terra, Gonçalo pôde ver na praia cerca de duzentos homens
com arcos e flechas que pousaram logo no chão conforme os portugueses lhes
pediam por acenos. Andavam nus, homens e mulheres, mas alguns usavam redes de
fio de algodão cobertas de penas de aves de muitas cores. Os dois nativos, mal
desembarcaram com o degredado Afonso Ribeiro, começaram a correr pela praia
deixando-o para trás sem saber o que fazer. Então Gonçalo, num impulso
singular, correu atrás deles, atravessando um rio com água pelas coxas até um
palmar onde os seus novos amigos mostravam aos que pareciam ser membros da sua
tribo os presentes dos estranhos viajantes vindos nos pássaros gigantes.
O
grumete via como os corpos da maioria deles eram quartejados de cores, metade
da própria pele e metade tintos de preto azulado ou vermelho, desenhados como
tabuleiros de xadrez de bonito efeito. Quase todos traziam os lábios furados,
com dois ou três buracos enfeitados de ossos ou pedras de cor, porém isso não
os impedia de falar, comer ou beber.
E não tinham um único pêlo no
corpo, além dos cabelos da cabeça, muito bem aparados em redondo por cima das orelhas também
furadas, adornadas de grandes arrecadas de osso. Penas amarelas, vermelhas e
verdes, coladas com cera e armações de osso, como diademas ou em forma de
carapuças enfiadas na cabeça, colares de contas brancas feitas de búzios ao
pescoço e uma manilhas[39] de penas nas pernas e nos braços eram
toda a sua vestimenta que eles ostentavam com grande galanteria. Afonso Ribeiro
apareceu no palmar, acompanhado por um indígena mais velho com o corpo todo
cheio de penas, pegadas na pele de tal modo que o faziam parecer um S.
Sebastião trespassado por setas.
–
Este bom homem condoeu-se de mim – comentou em voz alta – ao ver-me ali
especado, feito parvo, sozinho na praia e deu-me agasalho, que os teus amigos,
ó Assanhado, não são lá mui agradecidos!
–
Deviam estar mortos por contar novas do que viram, pois ainda não pararam de
falar! – riu-se o grumete a contragosto.
Sentia-se pouco à vontade na presença do
degredado, um criminoso que certamente cometera um delito muito grave, talvez
assassínio, pois fora condenado à morte e só se salvara da forca por se ter
oferecido para o serviço nas naus de descobrir, uma comutação permitida por
el-Rei D. Manuel. “Até parece que sou melhor do que ele!”, pensou
agastado consigo mesmo, “Afinal, partilho da mesma condição de degredo,
fugindo como um ladrão!”. Estes degredados eram os primeiros a desembarcar
nas terras desconhecidas e muitas vezes deixados aí, com os indígenas, para
viver com eles, aprender a língua e conhecer a região. Quando não morriam
nestas empresas, ficavam livres e alguns chegavam mesmo a enriquecer, voltando
ao Reino ou quedando-se na terra que os acolhera.
–
Que estão a fazer os teus dois amigos? – perguntou Ribeiro. – Não gostaram dos
presentes que lhes demos?
Ambos
os irmãos tinham despido as camisas e tirado os barretes, que logo foram
passados de mão em mão e envergados por outros, bem como os guizos e as
campainhas. O grumete admirou a generosidade com que estes homens nus
partilhavam objectos para eles preciosos e não pôde deixar de pensar na
ferocidade dos matalotes portugueses a defenderem os seus pertences mais
insignificantes da cobiça dos companheiros da nau.
–
Que mãos rotas têm os dois mancebos! – espantou-se o degredado. – Não guardaram
nada para eles?
Gonçalo
notou com satisfação que o filho da floresta não se desfizera da manilha de
latão que lhe tinha dado na cerimónia de boas-vindas. Nesse instante o
companheiro de Afonso Ribeiro fez-lhe sinal e levou-o até junto de um grupo de
gentios que se mantinham ao longe, observando. Antes de se afastar o degredado
avisou:
–
Toma cuidado, pois ainda não sabemos que gente é esta! Não confies demasiado.
O
grumete admirou-se por o criminoso se mostrar inquieto por sua causa e lhe dar
conselhos, mas não pôde agradecer-lhe nem sequer responder-lhe, porque quatro
moças que por ali andavam vieram observá-lo de perto. Eram mais moças do que
ele e estavam completamente nuas, trazendo apenas no pescoço muitas fiadas de
contas e sementes e à cintura uma espécie de cinto de fios entrançados onde
prendiam uma bolsa tecida com continhas de bonito lavor. Atadas nas pernas, logo
abaixo dos joelhos, tinham umas ligas feitas de fio de algodão vermelho muito
apertadas e as bonitas pinturas dos corpos eram as suas únicas “roupagens”.
Gonçalo
nunca tinha visto uma mulher despida (quanto mais quatro de uma só vez!) e não
sabia como agir nem para onde olhar. Achava-as formosíssimas e gentis, de
corpos redondos e formas harmoniosas, mais belas mesmo do que algumas das suas
amigas de Lisboa, com os cabelos muito pretos e compridos, descendo ao longo
das espáduas cor de cobre a que o sol dava um brilho macio de veludo contra o
fundo denso e verde da selva. Expunham as suas vergonhas com a inocência de
crianças e o grumete olhava-as com a admiração de quem contempla uma imagem ou
uma estátua de Diana ou de Vénus num jardim.
As
gentias rodearam-no e, primeiro com mostras de um certo receio, mas depois cada
vez mais confiantes e ousadas, começaram a tocar-lhe nas roupas, apalpando os
tecidos, falando e rindo todas ao mesmo tempo. Então, uma delas aventurou-se
mais e tomou entre os dedos uma madeixa do cabelo de Gonçalo, fazendo-a brilhar
ao sol, com um fulgor de ouro, arrancando exclamações de espanto às
companheiras e logo outra estendeu a mão para lhe tocar no peito que a camisa
deixava a descoberto e raspou-lhe a pele com a unha, como se quisesse
certificar-se de que aquela cor branca era pintada.
O
pasmo das moças fez rir o grumete e a gentia, rindo também, com um gesto
inesperado puxou-lhe o cordão das bragas que, antes de Gonçalo o poder evitar,
lhe escorregaram para os joelhos deixando-o nu. Todos os indígenas o miravam
com curiosidade, divertidos e admirados com a atrapalhação do estrangeiro, cujo
rubor lhe pintara a cara de um vermelho tão vivo como a plumagem das araras,
enquanto procurava subir as calças e atá-las à cintura ao mesmo tempo que
afastava as mãos das moças que insistiam em ver se todo o seu corpo tinha a
mesma cor branca, sem ser pintado.
Quando
finalmente, Gonçalo conseguiu recuperar a dignidade perdida, apertando
firmemente na cintura o cordão das bragas e aliviado por Afonso Ribeiro não o
ter visto naquela triste figura, o jovem guerreiro que lhe dera o arco apontou
para ele e em seguida para a cicatriz, falando sempre, enquanto mostrava o céu
e fazia gestos como se imitasse o voo de uma ave e o português ouviu-o
pronunciar repetidamente ”Uraçá”[40], apontando de novo para
ele. Por certo relatava os acontecimentos da nau, o seu “voo” entre mastros e o
salto acrobático que o havia sobressaltado e encantado. O nativo pôs a mão na
testa e olhando Gonçalo disse:
– Pahanjara! – e tomando o arco das mãos de um dos companheiros, colocou-lhe
uma longa flecha, retesou
a corda e lançou-a
como um raio. A seta subiu no ar, descreveu uma longa curva e foi cravar-se num
coco de uma longínqua palmeira derrubando-o da árvore. Sem se poder conter, o
grumete bateu as palmas e gritou entusiasmado:
–
Grande tiro, meu amigo! Digno de Ulisses.
Sempre
gostara das histórias antigas de gregos e romanos e aquela gente nua fazia-o
pensar nos deuses do Olimpo e nos heróis da Mitologia. O indígena repetiu,
tocando de novo na testa e mostrando o arco e as flechas:
–
Pahanjara.
Era
o seu nome de guerra, ganho seguramente pela destreza mostrada em combate ou na
caça. Fez um gesto de assentimento e pronunciou o melhor que pôde:
–
Pahanjara! – e acrescentou: – Senhor do
Arco e da Seta! Pahanjara!
Pahanjara
sorriu, contente de se ter feito entender e tocou levemente na testa de
Gonçalo, olhando-o interrogativamente.
–
Gonçalo! – respondeu alto, sem hesitar, levando a mão à testa tal como lhe vira
fazer e repetiu: – Gonçalo.
Os
homens pardos e as quatro moças soltaram grandes risadas e não repetiram o
nome. O jovem caçador pareceu embaraçado e o português teve a sensação de que o
som do seu nome deveria ser semelhante, na língua nativa, ao de alguma palavra
ou coisa pouco bonita ou indigna. Sentiu-se mal e corou de novo, sem saber o
que fazer, mas Pahanjara pareceu tomar uma decisão e, tocando-lhe de novo na
testa, disse:
– Uraçá! – e repetiu: – Uraçá!
– Uraçá! – repetiram os nativos em
coro, sorrindo.
Gonçalo
percebeu que lhe tinham dado um nome mais de acordo com a dignidade de
guerreiro ou caçador, um nome de ave de rapina e sorriu de orgulho por ser
aceite pelos gentios. Um a um, todos disseram o seu nome e Pahanjara,
envolvendo o grupo num gesto circular, concluiu as apresentações:
–
Tupiniquim. – E, abarcando a floresta com outro gesto, acrescentou com grande
orgulho na voz: – Tupi-Guarani.
Clã,
tribo e nação? Assim parecia ao grumete pelas histórias de seu pai sobre as
tribos selvagens encontradas nas suas explorações.
–
Português – respondeu, com voz de arauto. – Do Reino de Portugal. Na Europa.
– Portu-guês – repetiu o grupo com uma
pronúncia que o grumete achou assaz satisfatória.
Por
acenos, pediu-lhes para o seguirem até aos batéis a fim de ajudarem a fazer a
aguada. Ao longe Afonso Ribeiro e o outro grupo de nativos preparavam-se
igualmente para atravessar o rio e o degredado acenou-lhe como a dizer que tudo
correra bem por aqueles lados e Gonçalo correspondeu ao gesto antes de se pôr a
caminho com os novos companheiros.
***
Na
capitânia, Mateus estava preocupado e procurava manter debaixo de olho os
quatro rufiões que metera na ordem no início da viagem. Aparentemente os
meliantes tinham-nos deixado em paz, guardando as distâncias e evitando os dois
companheiros, no entanto, o Campanário sabia que aquilo não ia ficar assim, até pela maneira como os
via a espiá-los e a segui-los de longe, especialmente ao amigo. Apanhara-os
juntos, em ar de conspiração, a quando da partida dos escaleres e eles
dispersaram imediatamente ao vê-lo, não sem antes Mateus ter ouvido o chefe
dizer entre dentes “Às vésperas, aqui mesmo!”. Que tramariam os maraus?
Tinha de o descobrir a todo o custo, pois o amigo podia correr perigo.
Por
isso ali estava havia mais de uma hora, com o corpo enorme estirado dentro do
batel que não fora arreado e junto do qual vira os malandrins a conspirarem.
Parecera-lhe o melhor esconderijo, este escaler suspenso dos cabos acima das
cabeças dos homens, pois, dado o seu tamanho, Mateus dificilmente conseguiria
passar despercebido em qualquer outro lugar. Porém já começava a dizer mal da
vida, sentindo cambras em todos os músculos do corpo, por não se poder mexer
com medo de denunciar a sua presença e por momentos pensou se os ouvidos o
teriam atraiçoado, quando a sua perseverança foi recompensada ao ouvir passos e
vozes por baixo do escaler:
–
Não há meio de o encontrar!… Onde diacho meteu esse ranhoso a carta de marear?
– Já
vasculhamos por toda a nau... e nada!
–
Temos de o apanhar e em breve! – era o chefe que falava, Mateus reconhecia a
voz arrastada, sinistra, do meliante. – O Capitão-mor vai mandar para Lisboa a
naveta de mantimentos com a nova do achamento desta terra e nós temos de ter o
mapa nessa altura, para o entregarmos ao Castelhano.
–
Mas, chefe, nem sequer podemos espremer um bocado o rapaz, pois por onde quer
que ande o Assanhado, sempre o cabeçudo do Campanário está por perto!
Cabeçudo?!
Ele lhes diria quem era o cabeçudo, quando lhes deitasse as mãos e lhes desse
com as cabeças contra o casco da nau! Sentia-se ferver mas, por ora, tinha de
sufocar a raiva e continuar a ouvir a tramóia, muito quietinho, pois quem
espera sempre alcança.
–
Ainda estamos a tempo, sossegai. E, agora, pensai numa coisa… quanto não dará o
Castelhano por uma carta de marear com a derrota e informações desta terra
nova? Se lhas levássemos, matávamos dois coelhos com uma só cajadada e
recebíamos a dobrar! E desses dinheirinhos, Afonso Freire não verá nem um real,
pois o negócio não entrou no contrato de Lisboa e já muita sorte tem ele em o
livrarmos do enteado.
Mateus
quase gritou de fúria e revolta. Traidores! Vendidos! Roubavam os segredos do
Reino e davam-nos de mão beijada aos espiões de Isabel de Castela a troco de
algumas moedas de oiro! Para esta ralé o baraço e o cutelo não bastavam, deviam
sofrer tratos na roda e serem decepados e esquartejados. Vilões! Quem lhe dera
poder pôr-lhes as mãos em cima!
–
Não será muito difícil entrar no castelo da popa, nos aposentos dos pilotos e
do sota-capitão, para lhes caçar uma carta de marear. Com tantas novidades e
medições, a toda a hora anda gente a entrar e a sair de lá, assi, mais um,
menos um não deve fazer grande diferença…
–
Tens razão, é só esperar um momento de feição. Mais perto da partida para não
corrermos o risco de sermos descobertos.
–
Depois será fácil livrarmo-nos dos rapaz e se o amigalhaço souber alguma cousa…
–
Esse não perde pela demora! – O chefe dos rufiões não esquecera a humilhação
por que o gigantesco moço o fizera passar ante os grumetes e nesse mesmo dia
jurara vingança. Havia tal ódio na sua voz que Mateus, apesar de corajoso,
sentiu um arrepio.
–
Assi é qu’é falar! – apoiou o outro com um riso de gozo,
–
Mas, agora, toca a andar – retomou o chefe –, antes de alguém desconfiar,
sobretudo esse Campanário que já não vejo há horas e isso cheira-me a
esturro.
– É
mesmo! – a voz do homem tremeu de susto e Mateus, no seu esconderijo, não pôde
deixar de sorrir, apesar das dores do corpo, por ver como lhes fazia medo. –
Por onde andará?
–
Procurai-o por toda a nau, se preciso for! Não podemos perdê-lo de vista, pois
é perigoso e pode deitar tudo a perder. E ala que se faz tarde!
Mateus
ouviu os passos a afastarem-se. Então era este o plano dos patifes, de peito
feito com o padrasto de Gonçalo, o traidor-mor em toda a tramóia?! O seu
pressentimento fora verdadeiro, o amigo estava mesmo em perigo e pelos vistos
também ele andava debaixo do olho dos assassinos. Agora, tinham dobradas razões
para estarem alerta a prever-lhes as jogadas, mas para os denunciarem tinham de
os apanhar com a mão na massa e diante de testemunhas e isso parecia
impossível, pois o chefe da quadrilha não era novato no crime para cometer
erros. Deixou o duro esconderijo do esquife, ainda mais preocupado do que
antes.
***
Os
nativos tinham seguido Uraçá até à praia e todo o dia andaram num vaivém a
trazer cabaças de água fresca para os estrangeiros. Tomando alguns dos enormes
barris que Nicolau Coelho levava, foram enchê-los ao rio, transportando-os de
novo aos batéis, recebendo por pago cascavéis[41]
e manilhas de latão. Não se mostravam esquivos, embora não entrassem nos
esquifes, nem procuravam fazer qualquer dano aos portugueses entretanto
desembarcados, andando junto com eles, dando mesmo os seus belos arcos negros e
flechas emplumadas em troca dos sombreiros e carapuças dos matalotes.
Bartolomeu Dias deu ordem a alguns homens que se mantinham nos escaleres para
levarem os barris vazios até ao rio e aí os encherem de água pois assim que
volvessem com eles à praia, terminaria a aguada e regressariam às naus, mas
recebeu um coro de protestos assustados:
–
Mas, mê capitão, os selvages são mais qu’as moscas em mercado de pêxe!
–
Inda nos matam no rio quando estivermos longe das vossas vistas!
– E
muitos têm as setas ervadas[42].
Se nã morrermos do golpe morremos co’a peçonha!
– Só
vamos se levarmos os besteiros para nos acobertarem.
–
Não – disse Nicolau Coelho preocupado, pois os homens assim tão pouco
tranquilos podiam fazer alguma asneira ou gesto precipitado que agastasse ou
provocasse os gentios. – Nada de armas, para eles não pensarem que temos medo
ou os queremos atacar.
–
Sem dúvida! – confirmou Bartolomeu Dias, com autoridade. – Isso é que os
poderia levar a lutar connosco. Vamos acenar-lhes para que se afastem e nos
deixem sós.
Começaram
a acenar-lhes para que se fossem embora e eles obedeceram de boa vontade,
passando além do rio e deixando o caminho livre para os estrangeiros irem
encher os barris. Porém, quando os batéis estavam prontos para regressar às
naus, acenaram a Bartolomeu Dias para esperar e mandaram embora Afonso Ribeiro
que procurava acompanhá-los e passar a noite em qualquer aldeia para saber como
viviam.
–
Não me deixam segui-los, meu capitão, por mais que eu insista e finja não
perceber, afastam-me sempre e trazem-me à praia.
–
Mas eu preciso de saber mais coisas e não entendo nada da berberia que falam –
disse Pêro Vaz de Caminha preocupado. – Estou a escrever uma carta a el-Rei
nosso Senhor, sobre achamento desta nova terra e preciso de mais informações.
Como é que eles vivem? Em aldeias ou no mato? Que comem? Há ou não ouro e prata
na terra?
Gonçalo
hesitou, olhando o capitão que compreendeu a muda pergunta e lhe fez um gesto
de assentimento. O grumete tomou das mãos do degredado a bacia pequena com três
carapuças para dar de presente a algum chefe local e foi colocar-se junto de
Pahanjara que não o afastou. Fazia parte da tribo, pensou de novo com orgulho e
também divertido com o espanto dos seus companheiros:
– Ó Assanhado, a ti nã te mandam embora? Qu’é que
lhes deste em troca?
– Vê lá se te cortam a gorgomileira
durante a noite!
– E deixa as mulheres deles em paz,
ouviste?
–
Volveremos de manhã, pelas dez horas – avisou ainda Bartolomeu Dias. – Vem ter
connosco aqui à praia.
Ouviu os chistes e risos dos matalotes e
soldados enquanto os escaleres se afastavam, depois seguiu no rasto de
Pahanjara e da tribo que penetravam na densa floresta.
***
Nessa
tarde, o Campanário foi num dos
batéis que acompanhavam o do Capitão-mor e todos os outros capitães das naus
nos seus esquifes, em passeio pela baía, ao longo da praia deserta. Mateus
estava roído de cuidados por causa de Gonçalo que não só corria perigo de morte
na nau, como ainda tinha sido levado por uma tribo de selvagens para o mato.
Ele não era degredado para ter de arriscar a vida nessas tarefas de exploração,
como é que o capitão Bartolomeu Dias, de quem a sua tripulação dizia
maravilhas, consentira em tal coisa?
Queria
ir a terra procurá-lo e arrancá-lo das mãos dos homens pardos, nem que fosse à
paulada, mas por azar seu o capitão Cabral não deixou ninguém desembarcar na
praia, preferindo ir folgar num grande ilhéu, no meio da baía, onde os nativos
não podiam chegar e ali estiveram durante uma hora, até ao pôr-do-sol. Os
companheiros viam o seu desassossego e tentaram animá-lo:
– Nã
te rales, home, que estas criaturas nã são maldosas e nenhum dano hão-de fazer
ao Assanhado!
–
Atão nã viste como os dois que estiveram na capitânia gostaram do moço? Até
trocaram presentes e andaram todo o dia juntos!
–
Isso podia ser só pra ganhar a confiança dele e lhe tratarem da saúde mais
tarde... Se lhe acaecer alguma cousa, o capitão Dias é o culpado e eu lhe direi
das boas! – ameaçou Mateus, cheio de angústia.
– Nã
t’apoquentes! Vais ver como ele aparece aí amanhã, fresco que nem uma flor e
inda se há-de rir de ti e dos teus medos de mãe galinha.
O
ferreiro, agastado, afastou-se deles para não ouvir mais consolações e foi
sentar-se na extremidade do ilhéu, a fim de vigiar a praia e a selva onde
desaparecera o amigo. Olhava ansioso para a floresta, lá ao longe, prestes a
dar aviso no caso de Gonçalo vir ter ao mar, fugindo dos emplumados, todavia,
sem se condoer do seu desespero, a praia permaneceu deserta até ao momento de
volverem às naus ao sol posto.
Cap.
V
A Rede de Dormir
Pahanjara apontou e disse:
–
Taba – e repetiu: – Taba. Tupiniquim.
A povoação! Distava cerca de légua e meia
do mar, com uma paliçada a toda a volta para a proteger dos animais selvagens
ou talvez do ataque de alguma tribo inimiga, pensou Gonçalo. Começara a anoitecer
e alguns caçadores soltaram de longe gritos altos e agudos, fazendo acorrer
inúmeros velhos, mulheres e crianças a saudarem-nos com muita festa e prazer,
para logo rodearem o português cheios de admiração e curiosidade por aquela
criatura tão branca, de cabelos cor do pêlo da onça malhada e coberta de muitas
estranhas peles.
Enquanto entravam no recinto da aldeia,
Pahanjara falava-lhes na sonora mas doce língua nativa, dizendo várias vezes o
nome de Uraçá. Contava a sua história e, pelos rostos encantados dos ouvintes,
Gonçalo percebeu que o jovem caçador estava a alindar o conto com as cores
vivas da sua fantasia. Uma menina ofereceu-lhe um cágado e Jabuti, sorrindo,
informou:
– Jabuti. – E apontando para ele próprio
repetiu com um riso feliz: – Jabuti.
O nome do irmão de Pahanjara era Cágado! Procurou não se rir e fez uma
festa ao bicho, devolvendo-o à criança que lhe segurou a mão e se pôs a
caminhar a seu lado.
– Suiriri – disse ela e, tal como vira
fazer a Jabuti, apontou para uma árvore onde uns pássaros pequenos tinham os
seus ninhos e se desafiavam em trinados lindíssimos.
Chamava-se, pelos vistos, Suiriri e
Gonçalo percebeu que toda aquela gente tinha nomes de alimárias, aves, peixes,
plantas, flores, objectos e armas, numa harmonia perfeita com a natureza que
lhes dava tudo.
A aldeia era vasta, com dez cabanas tão
compridas como a nau capitânia, feitas de longas tábuas de madeira e cobertas
de folhas e ramos de árvores, dispostas em volta de uma enorme clareira.
Pahanjara e Jabuti conduziram-no a uma das casas e ambos disseram “Oca”, à entrada. “Casa” traduziu mentalmente Gonçalo. Os dois moços, hóspedes por uma
noite do Capitão-mor, davam-lhe o mesmo tratamento por eles recebido na nau,
fazendo o que Uraçá fizera quando lhes mostrara o grande pássaro de madeira
dizendo ao mesmo tempo os nomes das coisas que iam vendo.
A cabana, de grandes dimensões, formava uma
única sala com duas aberturas baixas, uma em cada extremo, e muitas colunas de
pau, entre as quais estavam pregadas pelas pontas, a boa altura, cerca de
quarenta redes de algodão (vinte de cada lado) que lhes serviam de leito e
deixavam um caminho aberto pelo meio da casa para todos se servirem, como num
dormitório ou coxia de galé. No chão, sob as redes de dormir, havia fogueiras
para se aquecerem e cozinharem os alimentos, tarefa em que se ocupavam várias
moças e mulheres quando Gonçalo entrou.
Uma anciã retirava de um comprido tubo de
cana uma massa branca e húmida que lançava num alguidar de barro posto sobre o
fogo onde a revolvia continuamente até a massa perder toda a humidade e ficar
feita em pó. Três moças tomavam essa farinha e amassavam-na com água, fazendo
bolos muito alvos que embrulhavam em folhas de palma e punham a cozer nas
cinzas incandescentes da fogueira. Interromperam a tarefa ao verem entrar o
estrangeiro, mudas de espanto. As narinas do grumete colheram um odor de pão
quente e a saudade da mãe e da sua vida perdida doeram-lhe mais fundo.
Jabuti chamou:
– Igapê! – uma jovem ergueu-se com um cesto
de bolos nas mãos e, acercando-se de Gonçalo, apresentou-lho para que se
servisse.
O moço sentiu a garganta seca e o coração
bateu-lhe mais apressado no peito, quase a sufocá-lo. Que formosa era, a
donzela cor de cobre, com a longa cabeleira negra a cobrir-lhe o corpo nu como
um manto sedoso e brilhante! Os olhos negros, suavemente amendoados pareciam
engolir a luz para brilharem mais intensos ao fixarem nele as suas pupilas
cheias de inocência e serenidade. Jabuti e Pahanjara sorriram ao gesto de
boas-vindas da irmã para que o hóspede estrangeiro se sentisse como em sua casa
e o grumete aceitou um pãozinho quente e macio, curvando-se graciosamente ante
Igapê que o olhava sem disfarce nem malícia, antes cheia de curiosidade e de
assombro, sorrindo-lhe também e retornando em seguida à sua anterior tarefa.
A pouco e pouco os caçadores e pescadores
da tribo foram chegando, alguns trazendo os filhos de seis ou oito anos às
costas e, saudando os presentes ou retribuindo saudações, iam acomodar-se em
volta das fogueiras, formando pequenos grupos. Eram cerca de quarenta pessoas,
sem contar as numerosas crianças e deviam constituir as várias famílias do clã
de Jabuti e Pahanjara. Os dois irmãos levaram Gonçalo até onde estava um velho,
com o rosto coberto de rugas e de cicatrizes, acocorado junto do fogo, a chupar
o fumo de um rolo de ervas secas com uma ponta em brasa, lançando no ar um
cheiro adocicado e intenso.
– Jacaúna – anunciou Pahanjara, num tom
respeitoso que o grumete ainda não lhe tinha ouvido.
– Jacaúna. Pajé! – acrescentou Jabuti, no mesmo tom, apontado para o colar
de ossos que o ancião trazia ao pescoço.
– Ere
iobê[43]?
– perguntou o ancião, mirando com pasmo e alguma perturbação o estranho hóspede
que seus filhos lhe traziam.
– Pa-aiotu[44]. –
sussurrou Pahanjara por trás do seu novo amigo, fazendo-lhe sinal para que
repetisse.
– Paai…otu! –
imitou o grumete o melhor que pôde.
– Auge-bê –
concluiu o ancião a saudação ritual e perguntou: – Marapê derere[45]?
Pahanjara
respondeu por ele: – Uraçá.
Um Pajé
era certamente um feiticeiro, a julgar pelos ossos e outros amuletos de
pedras, conchas e plumas depositados numa esteira perto dele. Parecia ser o
chefe da família e mesmo do Clã, pois todos o saudavam com respeito e tanto os
caçadores como os pescadores vinham oferecer-lhe um quinhão das suas presas.
Gonçalo entregou-lhe a bacia com os barretes vermelhos e o feiticeiro aceitou o
presente com um gesto de agrado, lançando de imediato as suas conchas e contas
para ouvir as vozes dos espíritos e saber
se o estranho guerreiro branco vinha de coração puro ou era seu
contrário. As pedras desenharam sobre a esteira o padrão do amor e da
generosidade e o ancião sorriu-lhe tranquilo.
A mulher idosa, que seguira atentamente a
cerimónia, começou a dar ordens a três companheiras mais novas que se
apressaram a obedecer. A mais moça trouxe-lhe uma rede de algodão que ela
pendurou em lugar de honra, perto da fogueira do Pajé, acenando ao hóspede como a dizer-lhe que era sua; as
outras duas mulheres azafamavam-se na preparação da comida e Gonçalo percebeu,
escandalizado, que o chefe tinha quatro esposas! E não parecia ser o único, a
julgar pelo que o grumete via junto a outras fogueiras da cabana.
O ancião sentou Gonçalo a seu lado, com os
filhos e os pretendentes de Igapê à sua volta e Pahanjara contou de novo a
história do forasteiro, todo cheio de gestos e entoações de voz. Outros homens
e mulheres vieram acocorar-se junto à fogueira e o silêncio desceu na oca para ouvir o conto daqueles que tinham
estado no ventre do Grande Pássaro de madeira e asas brancas e haviam voltado
vivos para contar a sua Marandúba[46],
trazendo um dos emboabas[47] com
eles.
Jacaúna tomou das mãos da mulher mais velha que
o servia a sua cangoeira de fumo acesa – um canudo feito de folha seca
de palma com umas ervas lá dentro – e Gonçalo viu horrorizado como ele metia a
ponta acesa na boca, sorvendo o fumo grosso que logo lhe saía pelo nariz como
por uma chaminé. Então, para seu maior horror e desespero, a mulher do Pajé
recebeu das mãos do marido o rolo incandescente da erva-santa e ofereceu-lho,
com o respeito devido a um hóspede que se quer honrar.
O grumete sabia que não podia recusar a oferta
sem correr o risco de ofender aqueles que o recebiam com a cortesia de
fidalgos. Como Uraçá, tinha de acatar os seus costumes e cumprir com os rituais
da tribo…mas aquele canudo aceso parecia-lhe cousa do diabo, para o fazer arder
nas chamas do Inferno! Contudo, jamais faria uma desfeita aos dois irmãos, a
olharem-no cheios de orgulho pelas atenções que o amigo, ainda tão moço, estava
a receber do poderoso feiticeiro e, assim, com mil cuidados para não queimar os
lábios e a língua, meteu a ponta em brasa na boca e fechando os olhos aspirou
com força. Um fumo grosso e áspero entrou-lhe pelas cachagens[48]
e goelas, saindo-lhe em fúria pelas ventas, fazendo-o cuspir o tição e
sufocando-o de tosse e aflição, as lágrimas a escorrerem-lhe dos olhos, por
entre os risos divertidos, embora discretos, dos nativos. Quando a tosse e as
lágrimas acalmaram, a cangoeira foi passada a outro e Gonçalo pode respirar
aliviado.
Aproveitando a pausa na conversa causada pelo
cómico incidente, as mulheres do Pajé
trouxeram vasilhas para todos, pondo diante do hóspede, sobre esteiras de palma
entrançada, muitas bacias com pedaços de caça, pastéis de milho com carne
picada envoltos em folhas de palma, pedaços assados de uma raiz chamada
mandioca e outras a que davam o nome de batatas, favos de mel e frutos
(sobretudo uns que Gonçalo achou muito bons, parecidos com o pepinos mas de
casca amarela em cachos de vinte ou trinta). Havia também muitas cuias ou cabaças pequenas com vinhos
feitos de raízes e de frutos. Gonçalo, farto das rações estragadas da nau,
comia de tudo e de tudo gostava. Viu-se um pouco atrapalhado com os pastéis, mas
Igapê, a formosa irmã dos seus amigos, abriu-lhe o delicado embrulho de folhas,
oferecendo-lhe o delicioso recheio na palma estendida da sua mão.
Depois, na noite de lua cheia (morna e doce como
uma noite de Agosto em Lisboa), no grande largo da ocara[49],
os mancebos e as moças solteiras da oca
de Jacaúna, com os rostos e os pés pintados de tinta vermelha, ostentando os
seus melhores enfeites de penas e de conchas, fizeram as suas danças, a que se
juntaram gentes de outros clãs para festejar o hóspede. Todos nus, muito juntos
e dispostos em roda, ao som de tamboris, flautas, matracas e cabacinhas ocas
com sementes, batendo no chão com um só pé, giravam e serpenteavam pela aldeia,
entrando e saindo das casas, um cantor dando o mote de improviso e os outros respondendo.
O grumete achava a música agradável e o ritmo forte e, quase sem dar por isso,
os seus pés começaram a bater no chão. Igapê, cantando, desafiou-o para a roda
e Uraçá, estonteado pelo licor, pela erva-santa e sobretudo pela beleza da
cantora, seguiu-a imitando-lhe os passos, numa cadência oscilante de pêndulo,
ao ritmo batido do tamboril.
***
Gonçalo sentia o calor, os fumos das fogueiras e
o rescaldo da festa a abafarem-no e saiu da oca para respirar,
desejoso de despir a camisa e as bragas e ficar em pêlo como os nativos que se
estiravam nas redes, sós ou acompanhados de suas mulheres. Era a hora de
dormir. Porém, ouviu risos e apercebeu-se dos movimentos de corpos jovens a
esgueirarem-se por entre as cabanas, saindo da paliçada e a correr para a selva.
Um suave sopro na nuca fê-lo voltar-se em sobressalto e corou ao ver o gentil
rosto de Igapê. A lua parecia pôr reflexos de prata na pele acobreada e
Gonçalo, sentindo o sangue a latejar nas veias, admirou extasiado o corpo nu da
menina-mulher.
A moça, sorrindo,
inclinou-se para ele a franzir o nariz no gesto de quem cheira e logo fazendo
uma careta de mareio. Não precisou de repetir a graça para o grumete se
aperceber, envergonhado, de que fedia a ponto de empestar o ar. Passara um mês
numa nau, sem se poder lavar, fazendo trabalhos pesados e sofrendo dias de
calmaria que só os banhos de mar tornavam suportáveis mas deixavam os corpos e
o fato, depois de secos, a tresandar a peixe podre. Devia
ter um cheiro nauseabundo que os seus companheiros de viagem só não notavam…
por cheirarem ao mesmo ou ainda pior! Porém aqui, no meio dos bons odores da
floresta, o seu corpo empestava como o de todos os portugueses e se calhar essa
era uma das razões por que os nativos não se chegavam muito a eles. Olhou para
ela e fez um gesto de vergonha como quem se desculpa.
A jovem tomou-o pela mão
e levou-o consigo para fora da paliçada, penetrando na selva. A lua era um
farol a iluminar a noite, mas mesmo assim Gonçalo arrepiou-se de medo com a
sensação de olhos rapaces a espiá-lo, enquanto atravessava uma invisível mas espessa
cortina de rumores, sussurros e gritos desconhecidos e só sossegou ao ouvir risos e som de água
ali perto. A nascente formara uma lagoa na clareira da floresta e ele viu
grande número de moços e moças da tribo, todos nus, a mergulharem nas frescas
águas, brincando e nadando como golfinhos.
A filha do Pajé falou-lhes, provocando grande risada entre eles e, subitamente,
Gonçalo sentiu-se levantado no ar por dois fortes mocetões que lhe arrancaram a
camisa, as bragas e as ceroulas (desde o dia em que as descaradas nativas lhe
tinham despido as calças, passara a usar sempre ceroulas por baixo) e o
lançaram de golpe para dentro de água. Dominou a aflição ao ser engolido pela
lagoa, contendo a respiração e deixou a frescura das águas mordiscar-lhe a pele
eriçada de excitação.
Mal veio à superfície,
viu Igapê formar um gracioso salto e mergulhar a cerca de quatro metros do sítio onde ele se encontrava, para
reaparecer alguns minutos depois e nadar na sua direcção. Outros nadadores se
acercaram para incluírem os dois jovens nos seus jogos e brincadeiras.
Pareciam-se com Adão e Eva sem pecado, antes de serem expulsos do Jardim do
Paraíso, os corpos tocando-se com a inocência e a liberdade dos seres puros da
floresta. Gonçalo mergulhou no encalço de Igapê e, ao alcançá-la, pôde
finalmente esquecer a sua dor.
Quando, cansados e
arrepiados, saíram da água e a moça lhe esfregou o corpo com uns tecidos
macios, feitos de uma qualquer fibra de árvore ou planta, que alguém deixara
sobre as pedras em troca da sua roupa suja, Gonçalo disfarçou o enleio e
entregou-se ao prazer dos seus gestos. Estenderam-se em seguida sobre a espessa
camada de folhas que cobria o chão da floresta e Uraçá avistou, à sua volta,
pequenos grupos a conversar e a rir, assim como algumas parelhas dispersas
trocando carícias e palavras de amor, como em qualquer outra parte do mundo.
A seu lado, qual ninfa
saída das águas, a irmã de Pahanjara era uma tentação e Uraçá gostaria de saber
falar a sua língua para lhe dizer as doces palavras de ternura e admiração que
lhe enchiam a alma. Todavia, se não podiam compreender-se na fala, talvez
pudessem entender-se por meio do canto, indo a música mais longe do que os
gestos, pois vira pouco antes na aldeia como este povo gostava de cantar e
dançar e como a bela nativa soubera chegar ao seu coração pela melodia e cor da
sua voz. Soergueu o corpo contra a lua, pondo sombras no rosto de Igapê e o seu
canto rasgou a noite em mágicas vibrações, louvando a beleza dos olhos negros,
o sorriso gracioso, a doçura dos seus lábios.
A filha do Pajé era
cortejada pelos mais audazes e valorosos mancebos não só da sua taba como das
de outras terras aonde a fama da sua beleza havia chegado e alguns deles quase
tinham logrado tocar-lhe o coração e mesmo alimentar-lhe os sonhos de menina.
Mas nenhum deles fora capaz de lhe fazer vibrar a alma e o corpo e de lhe
aquecer o sangue nas veias a ponto de lhe queimar a pele, como a voz e o olhar
do emboaba de cabelo dourado que viera de um outro mundo (quem sabe se enviado
por Tupã?), para lhe trazer a vida ou a morte num afago dos seus dedos e dos
seus lábios. Mas isso deixara de ter importância, pois Igapê já não era senhora
do seu coração, caído na teia daquele misterioso canto que ousava despertar os
ecos mais profundos e ocultos da floresta.
Fizera-se silêncio na
clareira, apenas perturbado pelos movimentos leves de quem escuta, mal ousando
respirar para não quebrar a magia. Os filhos da floresta não conheciam os sons
estranhos, porém captavam a emoção e o amor na voz do estrangeiro e
sentiram prazer e ciúme por verem que
era Igapê, a mais bela flor da sua tribo, a causa de tal feitiço.
***
Na oca já todos dormiam e a filha do
Pajé guiou-o, à luz fraca das fogueiras, até à rede suspensa entre duas colunas
e Gonçalo deu graças a Deus por a bendita obscuridade não deixar que o vissem
nu. Não encontrara a roupa ao sair do banho, nem conseguira que a moça lha
devolvesse – parecia ter levado sumiço para sempre! – e não tivera outro
remédio senão voltar em pêlo para a aldeia, procurando esconder as suas
vergonhas, como Adão, com uma folha de palma. Tentando apanhar o jeito ao
estranho objecto de dormir, subiu a medo e conseguiu estender-se na rede que
pareceu envolvê-lo como uma teia. Afinal era fácil! Procurou uma melhor posição
e a rede rodou imediatamente sobre si mesma, cuspindo-o para o chão com um
rebuliço que arrancou alguns protestos ensonados aos companheiros de
dormitório.
Igapê, contendo o riso,
voltou para junto dele e ajudou-o a subir de novo para a rede e a acomodar-se
no inconstante objecto. Depois tocou-lhe levemente na cicatriz, com muita
ternura e Gonçalo procurou segurar-lhe a mão e afagar-lhe o rosto. A rede
estremeceu, volteou e catapultou-o outra vez contra o solo, com maior estrondo
e mais protestos, agora já agastados. O grumete preparou-se para dormir no
chão, embora receasse as cobras (eram bastas e bem peçonhentas naquela terra!),
mas ela não consentiu, dando-lhe a entender por gestos que havia uma outra
maneira de dormir no leito oscilante.
Num movimento fácil e
gracioso, deitou-se na rede onde se acomodou em perfeito equilíbrio, ajudando
em seguida Uraçá a subir para o seu lado. Então a formosa moça, de corpo
acobreado e a cheirar a baunilha, abriu-lhe os braços e neles o grumete se
refugiou como num porto seguro, com o coração a pulsar de gratidão e de
ternura. Igapê ajeitou-se melhor, cingindo-o num terno abraço e a leve teia de
algodão envolveu-os, por fim, com a suavidade quente e macia de um casulo.
***
Os sons pouco familiares da oca fizeram-no despertar do profundo sono em que mergulhara na mágica
noite de lua cheia. A filha do Pajé dormia ainda, com a cabeça encostada ao seu
peito, o belo corpo de adolescente recortado nas sombras pelo brilho vermelho e
quente da fogueira.
Gonçalo não sabia como lidar
com as novas sensações e sentimentos descobertos desde que aportara àquela
terra e conhecera um povo pardo e nu a viver como Adão e Eva no Paraíso. E a
formosa filha da floresta, dormindo confiante nos seus braços, numa noite
desfizera com as suas carícias os nós da revolta, do ódio e do medo, reabrindo
no seu coração o espaço da ternura e do amor. Igapê espreguiçou-se, sonolenta,
fazendo-lhe lembrar uma onça, o esplêndido gato de pêlo dourado que avistara na
selva. A moça sorriu-lhe e, num movimento ágil, fazendo oscilar perigosamente a
rede, saltou para o chão. Desta vez Gonçalo não caiu, numa noite o seu corpo
tomara o jeito à teia de algodão como se sempre nela tivesse dormido.
– Igapê –
disse com ternura, à falta de palavras na língua nativa para lhe dar os bons
dias.
– Uraçá – respondeu ela, no
mesmo tom.
O nome estranho soou doce aos
seus ouvidos e pensou como seria fácil viver entre aquela gente, caçando com
Pahanjara e Jabuti e amando a filha do Pajé que, naquele instante, com a intimidade
de uma esposa, o tomava pelas mãos e puxava para fora da rede, nu e branco como
um verme!
Gonçalo nunca se sentira tão
embaraçado na sua vida, sobretudo por estar assim despido diante de mulheres,
mas não sabia como recuperar a sua roupa ou mesmo se voltaria a vê-la. Ali, na oca, ninguém estranhava a sua nudez
e, a pouco e pouco, começou a sentir-se mais à vontade entre eles em pêlo, do
que quando andava vestido. Todavia, se os portugueses o vissem naquele lindo
preparo iria tornar-se num motivo de chacota para o resto da viagem! E
Bartolomeu Dias esperava-o dentro de algumas horas na praia, pensou aterrado,
como poderia apresentar-se assim pelado diante do Capitão?
Igapê
ofereceu-lhe um fruto que nunca tinha visto antes, parecido com uma pinha[50] enorme,
cortando-o com uma faca feita de pedra e expondo a polpa amarela e sumarenta de
gosto delicioso. Apesar da sua preocupação, comeu até saciar a fome e logo
foram rodeados de moças e crianças que riam e tagarelavam à sua volta, enquanto
os arrastavam para a lagoa da floresta. De novo mergulhou nas frescas
águas, nadando e brincando como faziam os demais. Quando saiu do banho, viu que
Igapê tinha cortado a tapacura, a
liga vermelha de fios de algodão que lhe apertava a barriga da perna e em vez
dela estava agora um vinco profundo, como uma cicatriz, de muitos anos de uso.
A filha do Pajé, ajudada pelas duas primas mais velhas Uapê e Arati, começou a
esfregá-lo com óleos e em seguida, usando uma espécie de navalha feita de uma
cana muito dura e aguçada – Gonçalo ainda não vira um único objecto de metal,
fosse de aço, ferro, prata ou ouro –, puseram-se a depilá-lo até só lhe
restarem os cabelos da cabeça, mesmo assim rapados na nuca com a forma
arredondada de uma tigela. Nem as sobrancelhas escaparam!
Ao princípio ainda tentou
impedi-las, mas as moças eram persistentes, prendendo-lhe as mãos,
agarrando-lhe as pernas, rindo sempre como crianças inocentes com um brinquedo
novo. Por fim desistira para não magoar Igapê que parecia ter tanto prazer
naquela tarefa e o olhava com uma expressão tão terna e orgulhosa que lhe
aquecia a alma e o corpo.
Enquanto trabalhavam, as primas
zombavam dela com ternura e uma certa preocupação nos rostos. Como reagiria o Pajé ao ver que a mais formosa das suas
filhas e a mais disputada pelos pretendentes que o serviam há anos cortara a tapacura da virgindade por causa de um
estrangeiro, vindo de um mundo misterioso e longínquo? Nenhuma virgem tupi
podia esconder que perdera a sua virgindade, mesmo que tal acontecesse no mais
escondido segredo, pois os espíritos maléficos logo viriam atormentá-la com
terríveis castigos e suplícios, por isso tinha de cortar a tapacura para mostrar a toda a gente que se fizera mulher. Mas Igapê ria-se feliz e os seus olhos
falavam de amor quando se pousavam em Uraçá e as primas calaram os receios para
a acompanharem na sua ventura.
– Coatiá[51]
– murmurou a moça com determinação e as primas anuíram, rindo cheias de uma
alegria que contagiava Gonçalo.
Retirou da sua bolsa vários
potes pequeninos com tintas e uns delicados utensílios feitos em madeira, osso
e fibra, não muito diferentes dos pincéis e espátulas que o grumete conhecia.
Pelos vistos, as três moças tinham concertado a tramóia e vinham preparadas
para tudo, dando logo início à obra de pintura, vestindo-o das cores da sua
arte, quartejando-o de tintura preta de casca de angico e vermelha das sementes
de crajuru.
Em seguida, Igapê demorou-se
amorosamente no traçado, ao longo do corpo, de uns finos arabescos brancos e
azuis de lindíssimo efeito, enquanto Arati lhe pintava na testa, de fonte a
fonte, uma espécie de fita preta da largura de dois dedos. Quando terminaram
afastaram-se dele e Gonçalo, cheio de curiosidade e de susto, correu a mirar-se
no espelho da lagoa e, para seu grande espanto, sentiu-se… vestido!
– Coatiabo[52]
– disse-lhe Igapê com um sorriso de orgulho e Uapê e Arati acenaram num gesto
de aprovação.
O grumete mostrou-lhes o seu
agrado com palmas, vénias e sorrisos, mirando-se e remirando-se na lagoa
durante algum tempo. Porém, as horas corriam velozes junto de da irmã de
Pahanjara e Jabuti e ele tinha de fazer um esforço para se lembrar dos seus
deveres. Em primeiro lugar precisava de se
livrar das pinturas e procurar a sua roupa, se não conseguisse fazer com que
lha dessem de boamente, para ir ter à praia com o Capitão e fazer-lhe o relato
da sua aventura ou de parte dela, pois nem tudo poderia ser contado e, mesmo se
pudesse, alguns momentos passados na oca
eram só seus, de guardar para sempre na memória dos segredos. E já devia ser
tarde, porque o sol estava quase a pino, tinha de se apressar, se não queria
ouvir um sermão dos capitães ou mesmo receber um castigo por desobediência e
deserção.
Entrou na água para lavar as
pinturas, molhou-se e esfregou-as com força, mas o raio das cores não lhe
largavam a pele! Pelo contrário, com a lavagem o vermelho ficava mais vermelho
e o azul mais azul. As moças riam entre zangadas pelo pouco valor dado à sua
obra e divertidas com a aflição do rapaz.
– Como é que isto sai? – estava
a ficar impaciente e agastado por não lhes poder falar na sua língua e ser
forçado a recorrer apenas aos gestos para se fazer entender. – Não posso
mostrar-me assim à minha gente, não percebem isso?
Gonçalo estava a ficar
desesperado, pois isto ainda era pior do que aparecer nu, em pêlo, junto dos
seus companheiros. De que seriam feitas as malditas tintas? Vira realmente
nessa manhã homens a cortarem de um espesso arvoredo, com machados de pedra,
uns paus muito duros da cor de brasas acesas que, lançados pelas mulheres numas
bacias com água, largavam uma tinta de um vermelho muito vivo. Perguntara a si
mesmo se aquele pau-brasil[53]
não daria uma boa tintura para tingir tecidos e agora ali tinha a prova, só
que, por mal de seus pecados, o tecido tingido era a sua própria pele!
Igapê fez-lhe sinal para sair da água e
entregou-lhe o arco oferecido por Pahanjara, com um uiraçaba ou coldre, tecido por ela, cheio de flechas,
preparando-o para voltarem à povoação. Nesse
instante, uma mulher ainda moça saiu do mato com uma criança minúscula a
gritar e a espernear-lhe nos braços e Gonçalo viu, horrorizado, que as duas
criaturas pareciam fracas e exaustas e estavam cobertas de sangue, como se
tivessem sofrido um ataque de fera ou de algum inimigo da sua tribo. Pegou nas
armas para as defender, se acaso os atacantes viessem no seu encalço, mas, para
seu espanto, as três primas correram ao encontro da mulher ferida, com muitos
risos e exclamações de alegria a que a outra correspondeu com iguais
manifestações de júbilo, embora numa voz mais fraca.
– Uraçá – chamou Igapê,
enquanto caminhavam para a beira da lagoa, onde ele se encontrava, e
acrescentou uma fala muito expressiva de que o grumete não percebeu palavra.
Porém chegando junto dele, a
filha do Pagé tomou a criança nos braços e mostrou-a a Uraçá que viu um menino
roliço cor de cobre avermelhado, com um umbigo saliente de onde pendia uma
espécie de tripa ensanguentada. Era um recém-nascido que a mãe (e ele
lembrou-se subitamente de a ter visto na noite anterior com uma barriga inchada
e redonda como a lua cheia) devia ter parido no mato.
A mãe entrou na água para se
lavar e as três primas disputaram entre si o prazer de dar banho ao menino, sem
medo de o resfriarem ou de lhe fazerem mal e o moço português não pôde deixar
de pensar como eram diferentes os costumes na sua terra, em que as mulheres
davam à luz as crianças, ajudadas por físicos (se tinham dinheiro) e parteiras,
ou mulheres experientes da família, em quartos abrigados e aquecidos, comendo
canja de galinha gorda para criar forças, enquanto os recém-nascidos eram
limpos e envolvidos em faixas e ligaduras, para terem os corpos perfeitos e não
apanharem ar frio e, mesmo assim, morriam tantos!
Quando Sarará saiu da água,
tomou das mãos de Igapê o filho que chorava e meteu-lhe na boquinha ávida o
negro mamilo que logo lhe calou o pranto, pois a criança começou de imediato a
chupar o seio com estalidos de delícia e cerrando os olhos de prazer.
Puseram-se, por fim, a caminho da povoação, com as mulheres a fazerem um grande
alarido em volta da criança e Gonçalo a fechar o grupo, muito pouco à vontade,
mas com uma estranha sensação de ter participado numa espécie de milagre da
natureza quase divino.
Quando chegaram à oca, Sarará acercou-se daquele que
devia ser o pai da criança e entregou-lha. Tamanduá com uma risada de
felicidade ergueu o menino nos braços, para o mostrar em volta, colhendo
orgulhoso as exclamações e aplausos dos que se achavam na oca, enquanto a
mulher foi buscar uma rede nova, por certo já tecida para a ocasião, e
pendurou-a entre as duas colunas de madeira, junto à fogueira da sua família.
Então, para maior espanto e
desconcerto de Gonçalo, que pensava ver a mãe finalmente repousar descansada na
rede, foi Tamanduá quem nela se deitou, muito bem coberto de tecidos de palma e
penas, como se temesse que lhe entrasse o ar e ali ficou como homem parido,
recebendo a visita e as felicitações dos parentes e amigos que vieram vê-lo com
muitos presentes de comer e de beber e a mulher encheu-o de mimos e cuidados
antes de sair para o mato a trabalhar.
Vendo a estranheza de Uraçá,
Igapê tentou explicar-lhe que o pai tinha de estar assim empanado até secar o
umbigo à criança, sem se erguer da rede ou sair para a caça ou outro trabalho,
para lhe não dar um ar, pois logo o filhinho morreria e ele ficaria doente da
barriga. Mas era tão difícil, mesmo impossível, explicar-se sem palavras, só
por gestos! Como poderia dizer-lhe que gostaria de estar no lugar de Sarará se
Tamanduá fosse Uraçá? Como contar-lhe que da parte da mãe não há perigo para a
criança, pois ela é apenas o vaso onde se guarda a semente da vida que vem do
homem? Por isso ela pode ir trabalhar e amamentar o filho em segurança, por
quanto todo o perigo está no pai que o gerou.
A única coisa que o grumete
percebeu dos gestos e palavras da sua bela companheira foi de um perigo
qualquer que ameaçava Tamanduá e o filho, se ele deixasse a rede, por certo
qualquer superstição ou feitiço, pois já tivera oportunidade de ver como estes
indígenas temiam os feiticeiros e os agouros. Jabuti veio chamá-los para se
sentarem com o resto da tribo em volta das fogueiras para comer a caça acabada
de assar e o grumete pensou que nada o distinguia daquele povo, a não ser o tom
mais claro do seu cabelo.
No final da refeição, os homens
reuniram-se para decidir sobre uma proposta do Pajé para ir ver aqueles homens,
brancos como os espíritos dos seus antepassados, que haviam viajado de tão
longe em grandes pássaros de madeira e asas de pano. A discussão não tomou
muito tempo pois os recém-chegados tinham despertado a curiosidade de toda a
tribo e só os anciãos tentaram dissuadir o povo de ir até à praia para ver os
emboabas.
Os mancebos que cortejavam a
filha do Pajé, desde há muitas luas, servindo fielmente Jacaúna – fazendo-lhe a
roça, pescando e caçando para ele, defendendo-o dos seus inimigos –, sentiram o
dever de escoltar o velho e foram os primeiros a agruparem-se no recinto da
ocara, bem armados e com os seus melhores adornos de penas. Outros caçadores e
guerreiros da taba decidiram
igualmente acompanhá-los, assim como algumas mulheres mais corajosas. Uraçá e
Igapê iam no grupo de Pahanjara e Jabuti, pois o grumete sentia que os
pretendentes da moça o olhavam de soslaio, alguns mesmo com raiva e não queria
provocar nenhum conflito.
Gonçalo não lograra encontrar a
sua roupa e ainda menos quem lhe desse um produto qualquer para tirar as
pinturas, pelo contrário, tivera de sofrer a admiração de todas as moças da
taba que vinham ver de perto e tocar os belos desenhos do seu corpo. Igapê
terminara o trabalho da sua transformação num bravo Tupi, revestindo-lhe o
cabelo de barro vermelho, tornando-o igual a outros caçadores e, agora,
caminhando entre os seus novos amigos, ele sentia-se mais tranquilo e
confiante, um verdadeiro homem da floresta, impossível de ser reconhecido pelos
seus anteriores companheiros.
Cap. VI
Terras de pau brasil

– Somos
sempre os mesmos de serviço! A sorte quando nasce não é p’ra todos!
–
Calai-vos lá, que amanhã também é dia. Amanhã há-de ser a vossa vez!
O Campanário também desembarcara, ansioso
por encontrar o amigo que não voltara à capitânia na noite anterior, tendo
partido com uma tribo inteira de selvagens. Outra das suas preocupações fora
ver dois dos malandrins oferecerem-se como voluntários para ficarem na nau e
isso não augurava nada de bom, pois teriam o dia todo para procurar o mapa do Assanhado sem ninguém os perturbar. Na
praia, buscou pela orla da floresta algum vestígio do grumete, não fossem os
homens pardos terem dado cabo dele e deixado o corpo ao abandono para pasto de
feras e de vermes, mas nada encontrou.
– Eh, Campanário, andas a ver do Assanhado?
– A estas horas o rapaz inda ‘tá a dormir nos braços d’alguma
mocinha de pele vermelha!
– Deixa-te
de passeio e vem mas é pr’aqui mostrar
o que vales!
Voltou
para junto dos companheiros que, à sombra de uma árvore enorme, estavam a armar
um esperável ou pálio fixo e dentro dele um altar muito bem ornamentado para a
celebração da missa cantada, a primeira a ser rezada naquele mundo novo, como
dizia Frei Henrique com os olhos brilhantes de fervor e emoção.
***.
A tribo de
Jacaúna chegou à praia no momento da pregação, quando o padre se desvestiu e
subiu a uma cadeira alta, tendo diante de si os portugueses, sentados ou
ajoelhados na areia da praia. Gonçalo observou como alguns dos nativos se
acercavam do grupo dos portugueses, apesar dos conselhos e avisos do seu Pajé. Não queria ser visto pelos
companheiros naquela figura, mas desejava assistir à missa e ouvir os cânticos
que lhe lembravam uma época ainda não muito distante quando cantara no coro de
meninos da capela d’El-Rei D. João II e este o chamara à sua presença para o
felicitar.
Não lhe
foi difícil descobrir o Campanário,
pois a sua cabeça elevava-se pelo menos dois palmos acima dos outros, mas ainda
não sabia como poderia dar-se a conhecer ao amigo sem os demais se aperceberem.
Estava irreconhecível e isso deu-lhe ânimo para se juntar ao grupo de nativos
que, mais confiantes ou curiosos da cerimónia, se tinham misturado aos homens
brancos e imitavam os seus gestos de oração aos deuses da terra e do céu, pondo-se
de joelhos com mostras de muita devoção.
Frei
Henrique pregou uma bela história do Evangelho, no fim da qual tratou da vinda
dos portugueses e do achamento daquela terra desconhecida, confirmados com o
sinal da Cruz, a que todos estavam sujeitos, causando com suas palavras grande
devoção entre os matalotes e soldados. O Capitão Pedr’ Álvares Cabral tinha
junto de si a bandeira de Cristo, dada por el-Rei D. Manuel em Belém, a qual
esteve sempre erguida durante o Evangelho. Bartolomeu Dias procurava com o
olhar o grumete deixado em terra na noite anterior e, não o vendo entre os
indígenas, ficou preocupado:
– Não vejo
o rapaz – disse em voz baixa a Pêro Vaz de Caminha – e há muito que já cá devia
estar! Que lhe terá acontecido?
– Por
certo nada de mal, meu Capitão, que esta gente é boa e gentil. Reparai como
acompanham as nossas orações, até parecem cristãos!
– Mas o
moço mostrou-se sempre atinado, só um motivo de força maior o levaria a faltar
ao nosso encontro.
–
Sossegai, Capitão, deve andar a ver alguma coisa ou algum lugar de interesse
para nos contar.
– Seria
bom ele descobrir se têm minas de ouro ou prata – acrescentou o Capitão-mor. –
Até agora só vi enfeites de ossos, penas e pedras…
Terminada
a pregação emocionada de Frei Henrique, os padres entoaram os seus salmos e, em
coro, deram início a um inspirado Hossana
à glória de Deus. As vozes enchiam o ar, sobrepondo-se ao suave marulhar das
ondas e aos ruídos ásperos da selva, ecoando contra as escarpas vermelhas como
numa catedral. Sem se dar conta do que
fazia, sentindo-se dominado pela beleza do lugar, pelo sortilégio do momento e
por todas as sensações novas que lhe traziam a alma em tumulto, Gonçalo soltou
com toda a força da sua alma as notas vibrantes do cântico sagrado. A sua voz
perdera o tom cristalino da infância, mas ganhara em cor e intensidade,
ressoando agora, em plena natureza, como o mais belo instrumento musical, acima
das vozes dos sacerdotes que, um a um, se foram calando, entontecidos de
espanto e de fervor.
Milagre de
Deus ou obra do Diabo? Um selvagem nu e sarapintado como uma criatura infernal,
numa terra nunca antes pisada por homem branco, a cantar em latim com voz de
anjo? Matalotes e soldados, arrepiados de medo, caíram de joelhos orando e
vozes trémulas balbuciavam em surdina: “Milagre! Milagre!”. Pedro Álvares Cabral e os Capitães das naus
entreolhavam-se sem saber o que pensar ou fazer. Eram homens sabedores, tinham
visto muito mundo, testemunhado coisas maravilhosas, mas nunca haviam
presenciado nada de semelhante. Todavia, precisavam de se dominar e dar o
exemplo, não podiam agir como gente supersticiosa ou ignorante, lançando-se por
terra a gritar “Milagre!”.
Gonçalo
apercebeu-se do súbito silêncio à sua volta e dos olhos arregalados de pasmo de
todos os homens, brancos ou pardos, postos nele como se contemplassem uma
aparição divina ou mesmo diabólica e emudeceu, horrorizado. O Campanário viu no peito daquele selvagem
nu brilhar a cruz de prata de Gonçalo e, fervendo de raiva, lançou-se de punhos
em riste contra o maldito assassino do seu amigo, que se enfeitava com os
despojos do morto. Até mesmo a voz lhe roubara, que aquela voz era… a do Assanhado! Suspendeu o punho cerrado,
demolidor como um maço, a escassas polegadas da cara do selvagem. Realmente
quem lhe pusera a alcunha de Campanário acertara,
pois era estúpido como uma torre de Igreja, se nem o seu maior amigo conseguia
reconhecer!
– É o Assanhado, gentes! Não vedes qu’é o Assanhado?! – gritou cheio de alegria,
enquanto erguia o grumete no ar, apertando-o nos braços até quase o sufocar.
– Mateus,
livra-me deste aperto! – suplicou-lhe Gonçalo em voz baixa. – Não posso
aparecer assim pelado diante dos Capitães.
Imediatamente
o gigante despiu a camisa encardida que Gonçalo se apressou a enfiar e o cobriu
até aos pés como a túnica de um árabe.
***
O coração
de Igapê cerrara-se de tristeza e medo. Já de noite, na clareira da lagoa, o
estrangeiro a maravilhara com o seu canto, abrindo-lhe no coração a flor do
amor, como o botão do nenúfar que lhe dava o nome se abria à morna carícia do
sol. Nunca vira ou ouvira nada assim. A que tribo misteriosa pertencia Uraçá?!
Que seres eram aqueles, vindos em pássaros gigantes, cantando cânticos de
estranhas harmonias a Tupã? Em breve os pássaros de madeira estenderiam as
grandes asas brancas e partiriam, levando no seu ventre Uraçá, o gracioso
milhafre que partilhara com ela a rede de dormir e Igapê choraria por muitas
luas o vazio da sua ausência. Entregara ao estrangeiro a flor da sua
virgindade, embora sabendo que aquela
ligação não duraria muito e cortara a liga vermelha que a mãe lhe atara
na perna quando era ainda curumim[54],
mostrando assim a toda a tribo que se tornara na esposa do emboaba, até ao dia da sua
partida.
Porém, no fundo do seu coração, algo lhe dizia que, depois de ele se ir embora, já não seria capaz de aceitar
o pretendente que melhor tivesse servido seu pai na esperança de a ganhar em
casamento, como todos esperariam que fizesse, preferindo em vez disso deixar-se
morrer de mágoa e tristeza em qualquer canto da floresta. Afastou-se lentamente
para junto do Pajé que na orla da floresta agoirava grandes males para o
seu povo, trazidos por mais daqueles estrangeiros que chegariam muito em breve.
Mas poucos ouviam Jacaúna porque, ao verem os pajés dos brancos pararem com os seus
rituais, tomaram os tambores e as flautas e deram início à sua dança de
agradecimento a Tupã, o Deus do Trovão e de todas as coisas da floresta.
Frei
Henrique soube que já não conseguiria terminar a missa com o mesmo espírito do
começo, por todos terem ficado perturbados com a cena do grumete nu e agora
ainda menos, com as músicas dos nativos que davam gosto ver e excitavam os
sentidos. Disse então:
– Dominus vobiscum.
– Et cum spiritu tuo – respondeu-lhe um
coro distraído.
– Ite. Missa est – e deu a bênção aos
fiéis.
– Deo gratias. – Os homens, benzendo-se apressados, ergueram-se e
dispersaram.
Bartolomeu
Dias pôs-se de pé, sacudiu a areia das calças e mandou chamar o grumete que
fora rodeado pelos companheiros ansiosos por ouvirem contar a sua aventura.
Gonçalo apressou-se a obedecer ao mandado do Capitão, sentindo-se mais
à-vontade com a vestimenta improvisada a tapar-lhe quase por completo as
pinturas da pele. Só então se lembrou de Igapê e procurou-a com o olhar, mas a
gentil filha da floresta tinha desaparecido. Com o coração apertado de
angústia, foi ter com o grupo de Capitães que o esperava e corou ao ver Pedro
Álvares Cabral a olhá-lo com curiosidade e um sorriso divertido nos lábios:
– Então és
tu o milagre desta Páscoa? Sou um homem de sorte com tal grumete na minha nau!
– O Capitão-mor não parecia zangado mas Gonçalo baixou os olhos, sem saber o
que dizer.
– Foi boa
ideia deixares que te vestissem… ou melhor, te despissem como eles – disse
Bartolomeu Dias provocando algumas gargalhadas em redor –, para confiarem em ti
e te permitirem passar a noite na aldeia.
– Ele tem
jeito para lidar com os nativos – acrescentou Diogo Dias, o irmão do
Descobridor da Passagem –, lembrai-vos de como recebeu os dois homens na nau.
Os Capitães
concordaram.
– Viste na
povoação alguma coisa feita de prata ou ouro?
– Não,
Senhor Capitão-mor, nada vi de metal. Até as armas são de madeira e pedra e
usam nas suas tarefas cestos, bacias e potes de barro ou carapaças duras de
grandes tartarugas e de outros bichos como o tatu.
– Têm
ídolos ou imagens de algum deus? – perguntou Pêro Vaz de Caminha.
– Não, meu
senhor, nem sequer os vi rezar.
– Senhor
Capitão-mor – rogou o escrivão –, deixai o moço ir comigo à nau para lá me
contar em sossego tudo o que viu, para eu o escrever na minha carta a El-Rei.
– Seja,
Pêro Vaz – concedeu Pedro Álvares Cabral –, volvamos todos às naus para comer
e, assim, já podereis indagar a gosto. Mas entregai-mo logo que acabardes de o
ouvir, a fim de o trazermos de novo aqui, esta tarde, para ir com a gente da
terra a fazer vida com eles, vendo com mais atenção aquilo que não querem que
vejamos.
A uma
ordem dos capitães, todos os homens se juntaram para seguirem o Capitão-mor até
aos batéis, levando a bandeira erguida e tangendo gaitas e trombetas, como um
cortejo de embaixada. Alguns gentios entraram na água até aos peitos e outros
subiram para quatro embarcações, que não eram mais do que umas jangadas de três
troncos atados entre si, e acompanharam os escaleres dos portugueses mas só até
onde podiam tomar pé, volvendo depois à praia onde se sentaram a ver os batéis
acostarem as naus e os estrangeiros a entrar nelas.
***
Depois de
comer, Cabral mandou chamar à nau capitânia todos os capitães com os quais se
reuniu em conselho na sua câmara para onde convocara já Pêro Vaz de Caminha.
– Senhores
– disse o Capitão-mor sem delongas nem rodeios –, parece-vos bem que enviemos a
nova do achamento desta terra a el-Rei Nosso Senhor? Podíamos dispensar o navio
dos mantimentos...
– Sem dúvida!
– concordou Bartolomeu Dias. – Por certo, Sua Alteza quererá mandar descobrir
melhor esta terra e saber dela mais do que nós agora o podemos fazer, por irmos
de viagem para a Índia.
Todos os
capitães das naus e caravelas deram o seu acordo à proposta de Cabral que
perguntou ainda:
– E que
vos parece tomarmos por força um par destes homens, para os mandar a Sua
Alteza, deixando aqui por eles dois dos nossos degredados?
–
Desculpai, meu Capitão, mas isso parece-me escusado – disse Nicolau Coelho com
firmeza. – Se os tomarmos por força e os levarmos, tal feito não servirá de
nada a el-Rei, pois esta gente fala uma barbaria que ninguém entende e não
haverá tempo de a aprender durante a viagem, nem de lhes ensinar a nossa.
– E mesmo
que falassem a nossa língua ou nós falássemos a deles – acrescentou o escrivão
Caminha, dominando a sua timidez –, quando são levados à força, os gentios
costumam dizer que na sua terra há tudo o que lhe perguntamos, mesmo que não
seja verdade, para nos deixarem satisfeitos e de bem com eles.
– Também o
creio – apoiou Diogo Dias. – Muito melhor informação poderão dar dois ou três
degredados que cá ficarem a aprender a língua e os usos da terra.
Bartolomeu
Dias veio em socorro do irmão:
– Levar
qualquer gentio daqui à força só causará escândalo e criará ódios nesta gente
tão pacífica e que nos recebeu com tanta amizade. Devemos continuar a
amansá-los e a pacificá-los, oferecendo-lhes presentes e deixar com eles um par
de degredados quando daqui partirmos, como amigos e não como assaltantes ou
piratas.
Os
restantes capitães concordaram também que assim se fizesse.
– Seja,
então, meus senhores – concluiu o Capitão-mor, satisfeito. – Será conforme
determinastes. Vamos de novo a terra, para vermos melhor como é o rio e também
para folgarmos um pouco que tão depressa não teremos outra ocasião.
***
Quando
Pêro Vaz de Caminha mandou chamar Gonçalo e pediu um esquife para os levar a
terra, o grumete correu a vestir a sua última camisa e umas bragas, retomando
em seguida o arco e o carcás, oferta dos filhos de Jacaúna. Com a pressa de
partir esqueceu por completo o precioso mapa e os avisos de Mateus que lhe
contara a conversa dos traidores. Viu o Guardião e foi pedir-lhe um dos muitos
colares que traziam para oferecer aos nativos.
– Vou passar
a noite na aldeia dos gentios, Mestre Guardião, por ordem do Senhor
Capitão-mor. Preciso de levar um presente.
– Pois é,
pode parecer mal ires de mãos a abanar… – e o homem riu divertido – que eles
são de muitas polícias e cortesias!
No entanto
foi com ele ao porão e deixou-o escolher à vontade num saco de bugigangas.
Gonçalo decidiu-se por um colar de vidrinhos vermelhos que, na pele de canela
de Igapê, iriam luzir com o brilho de rubis e, depois, quase sem olhar tomou
uma faca para o Pajé.
– Esse colar
parece mais prenda de namorado para uma mulher, do que de oferta de visitante
ao seu hospedeiro! Que andas tu a tramar, ó Assanhado?
A cara do
grumete pareceu arder, ficando da cor dos vidrinhos do colar, e a gaguejar
agradeceu ao Guardião que ria do seu embaraço, partindo a correr. Os capitães
pediam-lhe para passar mais tempo com os nativos e isso era tudo quanto poderia
desejar, mas temia já não ser bem recebido. Por que partira Igapê? Estaria a
dizer-lhe que não voltaria a partilhar com ele a sua rede de dormir?
Os
matalotes e soldados entraram armados nos batéis que iam atrás do escaler do
Capitão-mor com a bandeira de Cristo. Os gentios andavam na praia, à boca do
rio e, mal viram os esquifes a acercarem-se, puseram os arcos na areia e
fizeram sinais aos portugueses para desembarcarem; porém, assim que os barcos
puseram as proas em terra passaram para a outra margem. Alguns matalotes mais
afoitos seguiram-nos, atravessando o rio, e misturaram-se com eles para trocar
sombreiros, carapuças de linho e outras bugigangas pelos seus arcos e setas.
Outros, encorajados, seguiram o exemplo dos primeiros e eram já tantos a querer
fazer tratos com os naturais da terra que estes, já impacientes, esquivavam-se
e afastavam-se. Pedr’ Álvares Cabral observava a cena com Bartolomeu Dias e
franziu o cenho, preocupado:
– Há
muita confusão por aquela banda, Capitão Dias. Não me praz mesmo nada que
persigam assi os gentios por cobiça, para fazerem tratos!
– E eles
já se mostram enfadados, estão mesmo a ir-se embora. Espero que os nossos não
dêem causa a nenhum conflito!
– Melhor
será pôr cobro à confusão e sem tardança! Ei, vós dois, passai-me além!
Os
matalotes que o Capitão-mor chamara correram a tomá-lo ao colo, fazendo uma
cadeirinha com as mãos e os braços, para o porem na outra margem sem se molhar
e logo que tocou com os pés no chão Cabral falou em altas vozes e com muita
severidade aos homens que o ouviram respeitosos e atemorizados:
– Cessai
já com todo este alvoroto! Não vedes que os assustais? Quereis que nos façam
guerra? Ide para a praia e quedai-vos junto aos vossos capitães!
Todos os
matalotes e soldados se apressaram a obedecer e a atravessar o rio. Alguns
indígenas, vendo-os partir, acercaram-se do Capitão-mor para lhe mirar as
vestes e muito curiosos por ver os dois homens tomarem-no de novo ao colo para
passar o rio, atravessaram também com eles rindo e troçando de tal proeza.
Pedr’ Álvares Cabral compreendeu que, estranhamente, estes homens não sabiam o
que era um chefe, um comandante, um rei ou um imperador e por isso não se
ajoelhavam nem se curvavam diante dele, com mostras do acatamento que lhe era
devido e que exigia dos seus homens; mas tão pouco o faziam a qualquer outro da
sua tribo, apenas prestavam um pouco mais de atenção às falas dos homens idosos.
Gonçalo
viu como muitos dos acompanhantes de Jacaúna se mantinham na praia e reconheceu
entre eles Uapê e Arati e outros da sua oca. Também o feiticeiro não arredara
pé até ver o Capitão-mor andar ao longo do rio e foi falar com ele, cheio de
determinação, tendo por fim, ao concluir a sua fala, tirado a grande pedra
verde do seu lábio e procurando repetidas vezes oferecê-la ao emboaba, buscando meter-lha na boca, o
que fazia os matalotes chorarem de tanto rir, até Cabral se enfadar com a
brincadeira e o deixar, virando-lhe as costas. Então Jacaúna entregou a um
marinheiro a pedra para que a levasse ao Capitão-mor e o português deu-lhe um
sombreiro em troca. Gonçalo viu como o velho feiticeiro olhava tristemente para
o chapéu e para as costas do Capitão-mor que se afastava e pôde entender a
humilhação do Pajé. Sentiu pena e um
temor desconhecido a apertar-lhe as entranhas, como um mau pressentimento.
Nesse
instante, o grumete ouviu sons de festa e grande agitação algures na praia. Era
o gaiteiro Francisco Galego a tocar na sua gaita de foles uma modinha bem
puxada, enquanto Diogo Dias e alguns companheiros mais folgazões dançavam com
os indígenas, agarrando-os pelas mãos, o que sendo contra o seu costume os
fazia rir a bom rir. Bailavam muito bem com ele ao som da gaita e também da voz
do calafate Luís Tomé que Gonçalo conhecera na Casa da Mina e não perdia
ocasião de tocar o seu cavaquinho e de cantar as modas de Lisboa, trazendo
sempre muitos gentios à sua volta, encantados de o ouvir. E o capitão Diogo,
arrebatado pela música, como se não fora o antigo almoxarife[55]
de Sacavém mas um qualquer matalote desbragado, fazia o pino andando sobre as
mãos e dando muitas voltas ligeiras e saltos reais[56],
com os nativos a soltarem grandes risadas e a baterem as palmas como viam fazer
aos portugueses.
Andavam
entre eles umas cinco mulheres nuas, uma com pinturas numa perna, desde o
joelho até à nádega e o resto do corpo com a própria cor e uma outra com um
filho ao peito, atado com um pano que apenas lhe deixava as perninhas à mostra,
mas Gonçalo, cheio de tristeza, não achou Igapê entre elas. Então, o
Capitão-mor deu ordem para que todos passassem o rio com ele e os portugueses
seguiram ao longo da praia, enquanto os batéis os acompanhavam rente à costa,
para que neles se refugiassem em caso de perigo, até que, com grande pesar de
Gonçalo, foram dar à grande lagoa de água doce onde, na noite anterior, se
banhara com Igapê e os seus amigos. Embora a lagoa estivesse deserta, o grumete
sentiu que os homens brancos profanavam aquele lugar sagrado com os seus risos,
chistes e doestos[57].
Súbitos
gritos, vindos dos escaleres, alertaram Bartolomeu Dias que viu os remadores de
pé, erguendo os remos no ar e apontando para a água, a soltarem brados de medo
e aflição. Alguns gentios tinham corrido
para a beira-mar, mas sem entrar na água e mostravam igual agitação e Gonçalo,
que caminhava perto dele, foi atrás do Herói da Passagem quando o viu
atravessar o rio e correr para os barcos.
– Japeru-jaguara! Uperu! Japeru-jaguara! –
bradaram os homens da floresta, mal o capitão chegou junto deles e apontaram
para uma longa sombra esguia que se deslocava com grande rapidez, sob a água
baixa, cortando a superfície com uma barbatana pontiaguda e triangular como a
quilha de um barco.
–
Tubarão! Tubarão! – gritaram, por sua vez, os homens brancos.
Bartolomeu, durante a sua longa carreira de
descobridor, já tivera numerosos encontros com tubarões e reconhecia naquele
exemplar de bom tamanho um devorador de homens, a nadar rente à praia em
círculos cada vez mais apertados, enfrenesiado e ainda não satisfeito apesar do
estrago que causara. Com efeito, um dos indígenas, deitado na areia, com uma
perna arrancada acima do joelho, esvaía-se em sangue perante a impotência dos
seus companheiros que o viam morrer sem meios de lhe acudir.
– Como
aconteceu? – perguntou o capitão para os seus homens que, ao vê-lo, chegaram o batel o mais cerca que puderam. –
Nunca pensei que se acercassem tanto de terra, pois precisam de água mais funda
para se virarem de borco, quando atacam.
Manuel
Serrano, o cabeça do grupo contou, ainda alvoroçado:
– Pois
este apanhou aquele desinfeliz quase na areia, sem tir-te nem guar-te, antes da
gente o ver e poder dar aviso.
–
Arrancou-lh’ a perna d’uma só ferradela, igual se lha cortara c’um machado! – o
remador falava a tremer, como se tivesse febre: – Vi-lhe bem as muitas ordens
de dentes quando lançou a cabeça toda fora d’augua pró abocar e, assim que lhe
ferrou os dentes, sacudiu o corpo todo c’ uma força d’espantar e em menos de um
ai, sacou-lh’ a perna!
– Tinha
levado o home inteiro s’os outros lho nã
estorvaram, puxando-o pra terra.
O
tubarão dera de novo a volta e apontava o focinho alongado e pontiagudo para a
praia, movendo a cabeça de um lado para o outro a farejar a presa e deslizando
pela água como uma seta pelo ar e Gonçalo pensou, agoirento, se aquela alimária
não se havia vingado nos gentios por estes caçarem os da sua espécie, com
arpões e setas cujas pontas eram feitas dos seus terríveis dentes triangulares,
do tamanho de um polegar e de bordos serreados, como uma seta que lhe dera
Igapê, os quais eram tão mortíferos nas mãos dos homens como na boca dos seus
donos. Porém, a voz de Bartolomeu Dias, tirou-o dos seus pensamentos:
– Dai-me
o arpão do batel!
E entrou
na água até às coxas para se chegar ao esquife. Gonçalo não se conteve e gritou
de inquietação, ao ver o tubarão desenhar um círculo mais apertado:
–
Cuidado, meu Capitão, que o monstro já se
acerca!
No barco
os homens sobressaltaram-se e Manuel Serrano tomou o arpão que sempre traziam
quando vinham folgar a terra, para o caso de verem presa de monta, como
peixe-boi, espadarte ou tubarão e lançou-o rapidamente ao capitão, tendo o
cuidado de verificar se a corda que o prendia ao batel estava bem segura,
enquanto dizia:
– Saltai
cá pra dentro, que aí nã estais seguro e daqui vereis melhor o bicho e podeis
arpoar de riba. – Bartolomeu obedeceu, estendendo a mão ao homem que o içou
para o escaler.
– E tu,
rapaz, sai já da água, que ali vem ele! – bradou enquanto erguia o arpão e se
plantava na proa do batel em posição de lançamento.
Gonçalo
nunca vira um tubarão na sua vida, só os conhecia dos contos de seu pai e
aquele monstro acinzentado em forma de canudo, a rasgar as águas com a
velocidade de um tiro de bombarda, mas tão silencioso e mortífero como um
dardo, encheu-o de tal pasmo que ficou incapaz de se mover, imerso na água até
à cinta, com o arco e uma seta nas mãos, ouvindo apenas o suave murmúrio da
quebra-mar nas suas costas.
Bartolomeu
viu, pelo canto do olho, o estado do rapaz que se encontrava a escassos metros
do batel e empalideceu de inquietação, pois não tinha dúvidas de que o tubarão
já o cheirara e vinha para o atacar. Sem perder o sangue-frio, fez sinal aos
remadores para imobilizarem o esquife e não fazerem um som. Na praia, os
nativos pareceram compreender a situação e ficaram quietos e em silêncio
fitando Uraçá, o moço estrangeiro adoptado como um filho por Jacaúna.
O
capitão deixou o tubarão – muito maior do que lhe parecera ao longe – passar à
sua frente e permaneceu imóvel, vendo-o acercar-se do grumete e rodar o corpo
até mostrar o ventre branco e a bocarra enorme que se escancarou expondo as
fiadas de dentes acerados com lâminas. Antes da monstruosa criatura abocanhar
Gonçalo, Bartolomeu lançou o arpão com toda a força dos seus poderosos músculos
e o longo ferro foi cravar-se profundamente no ventre do feroz esqualo.
Um grito soltou-se de todas
as bocas quando o gigantesco animal saltou no ar, quase dobrado sobre si mesmo,
do choque do ferro e da dor que lhe haviam quebrado o ímpeto do ataque.
Esquecido da presa, ao embater de novo na água, esvaziando-se de sangue e de vida,
lançou-se para a frente, ziguezagueando veloz em busca de águas mais profundas,
desenrolando a corda do arpão até encontrar a resistência do batel que
estremeceu e oscilou, quase fazendo Bartolomeu cair ao mar. Gonçalo que se
recompusera do susto e nenhum mal sofrera, agarrou-se de um salto ao bordo do
batel já em movimento e o capitão que, com o ressalto do barco caíra de borco
na proa, puxou-o para dentro e ordenou aos remadores ainda pasmados da cena:
–
Recolhei os remos e deixai-o puxar pelo batel que assim se vazará mais depressa
do sangue e não tardará a morrer.
Os
homens obedeceram, parecendo ganhar nova vida à voz do capitão, apesar dos
solavancos do barco que, segundo o bicho mergulhava ou volvia à superfície, ora
parecia voar, ora caía com um violento chapão na água, levantando grandes ondas
vermelhas de sangue e molhando os matalotes que falavam todos ao mesmo tempo de
excitação e medo:
– Mas
que força tem a alimária! Leva-nos mais asinha que o vento em velas arvoradas!
– Parece
mas é que o leva o demo! Vamos lá ver se nã nos destronca o batel!
De
súbito, o tubarão deu meia volta e nadou veloz na direcção do escaler, fazendo
alguns remadores erguerem-se cheios de pavor:
– Ai,
minha Nossa Senhora, qu’ele vem contra nós e aqui não temos armas!
– Jesus
me valha, qu’é o nosso fim!
Bartolomeu
Dias bradou severo mas com voz tranquila:
–
Sentai-vos e calai-vos. Tomai os remos e se o tubarão se acercar do esquife,
batei com eles na água e mesmo no bicho que já deve estar mui fraco.
De novo os
homens obedeceram segurando os remos com força nas mãos, de olhos fixos na
barbatana triangular que avançava para eles, ali à espera, no pequeno barco
agora imóvel. No instante em que o corpo do tubarão era já todo visível,
Gonçalo pôs-se de pé e, com movimentos precisos e seguros, colocou a seta
emplumada cuja ponta era um enorme dente de tubarão no arco de Pahanjara e
retesou a corda. Os companheiros e também Bartolomeu olharam-no com admiração,
esquecidos dos remos. Gonçalo não imaginava qual seria o resultado do seu
disparo, pois havia falhado as suas primeiras tentativas com aquela
arma desconhecida, mas a pouco e pouco apanhara-lhe o jeito, aplicando ao longo
arco indígena o que aprendera com os archeiros e besteiros portugueses durante
a viagem.
Quando o
enorme esqualo ergueu o focinho, abrindo a boca e fazendo avançar a poderosa
mandíbula ornada de terríveis presas, o grumete desferiu a seta que se cravou
até ao cabo na parte inferior da garganta do animal que se contorceu e se
afundou. O barco, lançado para longe, só não se virou por um milagre dos céus
que tanto haviam invocado. Quando voltou à superfície, o tubarão boiava já sem
vida, mostrando o ventre branco atravessado pelos dois ferros e os remadores
saudaram o feito do capitão e do grumete com muitas palmas e assobios.
– Foi
obra, sim senhor! – felicitou-o Bartolomeu. – Mostraste muita coragem e
sangue-frio, para alguém tão moço! Tenho de falar de ti ao Capitão-mor, para
que te dê alvíssaras.
– O meu
capitão já tinha dado cabo dele! – respondeu com modéstia, corado até às raízes
do cabelo dourado.
– Pois
olha que eu o vi cheio de vida e prestes a arrombar-nos o barco ou a virar-nos
de pernas para o ar! Foi o teu tiro que acabou de o matar e evitou o pior. Bom,
agora é tempo de volver à praia e tu podes ir dizer aos teus amigos gentios que
venham buscar o tubarão se o quiserem comer, que lho oferecemos em senho de
amizade. Vamos, minha gente, dai força aos remos, antes que apareçam mais
dessas criaturas ao cheiro do sangue.
A
lembrança do ataque pôs asas nos remos dos matalotes que, em menos de um credo,
puseram o escaler em terra e puderam puxar para a praia, auxiliados por alguns
caçadores do Pajé, o tubarão que
traziam à toa[58].
Os nativos reconheceram a seta de Pahanjara e sorriram a Uraçá, o moço
estrangeiro que Igapê amava
e o grumete soube então que fora definitivamente aceite pelo clã de Jacaúna. Gonçalo recebeu licença para procurar os seus amigos no lugar, onde se
juntavam muitos dos homens da floresta que preferiam observar os estrangeiros a
distância a misturar-se com eles. Cada vez surgiam mais gentios curiosos,
vindos de outras tabas aonde chegara a notícia do espantoso acontecimento,
muitos através da floresta, outros pelos rios, em canoas feitas de um só tronco
escavado, com vinte ou trinta homens a remar de pé, que pareciam voar.
O
grumete viu Pahanjara e Jabuti encostados a uma árvore tendo junto de si os
pesados arcos de caça e as longas zarabatanas e escondeu-se atrás de uns
arbustos para se despir, guardando a roupa na sacola que trazia ao ombro.
Depois, mostrando-se orgulhoso da sua nudez e das pinturas de Igapê, tomou o
arco e o carcás e acercou-se dos dois irmãos. Jabuti recebeu-o com um grande
sorriso:
– Uraçá!
–
Jabuti. Pahanjara. – disse Gonçalo na falta de melhor saudação.
– Uraçá! – fez igualmente
Pahanjara, pondo-lhe a mão no ombro e continuou a falar com ele como se o
pudesse entender.
–
Japeru-jaguara! Uperu! Japeru-jaguara! – interrompeu-o o grumete, procurando
pronunciar bem as palavras que ouvira aos nativos e apontado para a praia.
Os
dois irmãos pareceram compreender e Uraçá ficou à espera, enquanto eles se
dirigiram até ao lugar onde um grande ajuntamento de gente observava os
caçadores nativos a desmancharem o tubarão. Quando chegaram junto deles, dois homens
tinham acabado de abrir o imenso estômago do animal e dele retiravam a perna
inteira que fora arrancada uma hora antes ao desgraçado que morrera. Com todo o
cuidado foram pô-la junto ao morto na rede que entretanto alguém trouxera para
o transportar para a taba dos seus antepassados.
***
O rosto
de Igapê iluminou-se ao vê-lo chegar. Sem dizer uma palavra entrou na oca indo para junto das outras mulheres preparar a comida do seu
guerreiro. Suspendeu as tarefas quando Uraçá entrou com os irmãos, carregados
de tassalhos de carne de tubarão e ficou feliz por ver como o estrangeiro a
buscava com um olhar ansioso e lhe sorria com carinho. Quando as mulheres foram
tomar as carnes para as pôr nos juraus, Igapê juntou-se a elas e recebeu das
mãos do amado o seu quinhão de comida.
Os
homens foram saudar o Pajé e dar-lhe a
parte da presa que lhe era devida, mas o feiticeiro manteve-se absorto a
lançar as pedras e conchas da sua arte, invocando os espíritos dos antepassados
para lhe mostrarem o que o futuro reservava ao seu povo e essa visão deixava-o
assustado. Os padrões que se formavam sobre a esteira eram os da desgraça,
doença, servidão e morte e ele sabia que tinha de aprofundar a sua visão com os
fumos das ervas sagradas de Tupã, na Gruta do Recife Vermelho onde as profecias
nunca erravam. Com profunda dor, guardou as conchas na bolsa de pele e
correspondeu com um sorriso triste à saudação dos filhos e do estrangeiro.
Na oca, à fogueira, as cenas
repetiram-se como na noite anterior, com Uraçá e os seus amigos a comerem
tassalhos de tubarão assados, regados pelo generoso cauim, o vinho de aipim e mandioca cozidas que as
mulheres preparavam espremendo a polpa com as mãos, mastigando e cuspindo para
dentro das vasilhas o líquido que deixavam a fermentar. Contavam esse e outros feitos dos estrangeiros, divertidos ou espantados
com tantas novidades, olhando para o hóspede e dizendo aquilo que o grumete,
mesmo sem conhecer a língua, sabia serem chistes e graçolas, mas também ditos
de apreço e admiração, pelas expressões dos contadores das histórias e os risos
e exclamações dos ouvintes, sobretudo das mulheres. Descreviam, sem dúvida, o
tumulto causado na missa pelo seu glorioso Hossana e a caça ao tubarão, pois mostravam em
redor a seta que Uraçá usara para dar morte fulminante ao gigante dos mares.
Então as mulheres trouxeram cangoeiras de erva-santa para o fumo da amizade e
Uraçá mal lhe sentiu o cheiro ficou mareado, recordando a experiência terrível
do dia anterior. Mas Igapê acercou-se dele e deu-lhe um objecto feito de dois
ossos ocos, como tubos longos e estreitos atados no meio em Y e uma pequena prancheta esculpida em
forma de ave, com uma concavidade no meio onde o grumete viu um montinho de pó
branco. “Pericá”, disse a jovem e
voltou a sentar-se junto dele.
Três nativos com idênticos utensílios, meteram um tubo em
cada uma das ventas e aspiraram pela ponta mais estreita o pó das pranchetas
esculpidas em forma de onça, de cobra e de tatu. O Pajé, de olhos cerrados, entoou aquilo que parecia ser uma oração,
expelindo o fumo para o centro do círculo da fogueira, orientando-o com gestos
ritualizados. Uraçá soube que partilhava um momento sagrado de comunhão com os
espíritos e, a medo, aspirou um pouco de pó. Não sentiu nada além de uma
ligeira comichão no nariz e, mais tranquilo, continuou a participar da
cerimónia, imitando os gestos dos seus companheiros.
A pouco e pouco, um doce torpor foi-se apoderando dele e
sentiu-se leve como a pequena ave de rapina de que recebera o nome, com uma
ânsia de voar a impeli-lo para fora do corpo, como se buscasse a sua natureza
verdadeira. Quis falar, perguntar o que se estava a acontecer, se o tinham
envenenado ou se o iam matar, mas a sua garganta não lograva formular palavras,
apenas gritos agudos de uma ave de rapina.
E, de súbito, o uraçá dentro dele bateu as asas,
libertando-se do corpo adormecido para se lançar veloz como uma seta em
direcção aos céus onde o sol brilhava por sobre a floresta. Cruzava os céus,
captando novos odores na humidade do ar, sons que nunca antes distinguira e o
seu olhar penetrante abarcava o mundo com uma intensidade jamais vivida.
De muito alto viu na praia as naus e as caravelas,
frágeis pássaros em repouso antes da sua longa viagem para o Oriente. Rodopiou,
planando e soltou por três vezes o grito agudo e entrecortado do uraçá quando
se prepara para cair sobre a presa, mas, nesse instante, sob o seu olhar
aguçado de milhafre, desdobrou-se um imenso pergaminho com a derrota rasgada
pelo engenho, sacrifício e coragem dos portugueses. Era um caminho longo de
aventura e de fortuna por descobrir, uma promessa de futuro por cumprir. Porém,
quando se ia lançar no rumo traçado no grande mapa dourado, um assobio fino e
vibrante soou aos seus ouvidos, paralisando-o, puxando-o com uma força
irresistível para a terra de onde se havia libertado e Uraçá, sem opor
resistência, baixou dos céus e veio pousar suavemente na mão estendida de
Igapê.
Gonçalo
despertou, assustado, do sonho provocado pela droga, a experiência fora tão
real que o grumete ainda tinha no nariz e nos ouvidos os cheiros e os sons da
floresta. A fogueira ardia mais fraca e muitos nativos dormiam no chão sob os
efeitos do cauim ou do pericá.
A filha do Pajé estava ao seu lado, inquieta e atenta ao retorno do seu
guerreiro do terrível mundo dos espíritos onde a sua alma, solta pelas ervas
dos sonhos, se podia perder em fumos de loucura para não mais volver.
Estendeu-lhe a mão para o tranquilizar e saíram da cabana abafada e fumarenta
para a frescura da noite.
Depois,
houve jogos na lagoa, o luar matizando de prata os corpos de cobre… depois
Uraçá rodeou o delicado pescoço da filha do Pajé
com o fio de contas de vidro que, à luz da lua, ganharam o tom vermelho-escuro
dos seus lábios. Cheia de emoção, a menina-mulher acariciou o colar de
desposada com que o estrangeiro selava a sua união, admirando os seus poderes
para, sem conhecer a língua do seu povo nem os seus costumes, ter adivinhado o
ritual mais secreto das mulheres tupi.
Por isso
Igapê lançou um canto exultante em direcção ao luminoso rosto da Lua, a Mãe da
noite e dos sonhos, celebrando com os seus companheiros os sons da floresta,
imitando a voz do sabiá e do saixé[59], os
gritos dos caçadores e os lamentos de agonia da presa ferida. E Uraçá,
enternecido e feliz pelo prazer que ela mostrara ao receber um presente tão
mesquinho, ergueu também a voz na noite, cantando a alegria de ter de novo a
seu lado a formosa nativa de pele de canela e longos cabelos a cheirar a
baunilha.
Na floresta fazia-se silêncio,
pois nem os terríveis caa-pora ou mesmo os irrequietos curupira[60],
esses espíritos malignos da mata sempre prontos a acometer os humanos, ousavam
perturbar a beleza do momento.
Depois, na rede de dormir, os
gestos de ternura falaram melhor do que todas as palavras.
Cap. VII
Postos a
ferros
O
trabalho nas bombas era o maior castigo dado numa nau, pior até do que os
açoites públicos no convés. Por isso estava reservado aos escravos e cativos
mouros, apresados durante os combates no mar e nela postos a trabalhar até à
morte que não tardava a chegar com o esgotamento, o calor e o desespero das
grilhetas. Gonçalo e Mateus jaziam acorrentados no porão, numa escuridão quase
total. Sabiam ser dia só pela réstia de luz coada através das ripas do alçapão
que dava para o convés inferior, por cima das suas cabeças, porém à noite, e
apenas nas raras ocasiões de serviço, um toco de vela encerrado numa gaiolinha
de metal, por causa dos fogos, lhes vinha rasgar as trevas.
As
dores no corpo e, acima de tudo, a revolta contra a injustiça e os caprichos da
sorte ou do alvedrio[61] dos
capitães, mais inclinados a ouvir os seus iguais em estado do que a conhecer a
verdade se esta vier da boca de um moço grumete, mantinham Gonçalo desperto e
tenso como a corda de uma harpa prestes a rebentar. Ouvia a respiração pesada
do Campanário, deitado a seu lado no
chão imundo do porão da naveta de mantimentos e invejava-lhe o sono, embora se
sentisse culpado por ter arrastado o amigo para aquela situação, ligando-o
irremediavelmente ao seu destino.
Tinham
sido presos na nau capitânia, na tarde de quinta-feira, acusados de roubo e
traição por Martim Pereira, o chefe dos rufiões que preparara cuidadosamente o
golpe e fizera bem as jogadas, aproveitando-se das suas estadias em terra e de
um descuido de Mateus. O meliante gozava de poderes para os mandar pôr em
ferros à bomba da naveta de Gaspar de Lemos, que estava a ser despejada e
preparada para voltar a Portugal a fim de dar a El-Rei a nova do achamento da
Terra de Vera Cruz. Nela seriam transportados para o reino onde, se já não
tivessem morrido no duríssimo trabalho, os esperariam a prisão, o laço do
garrote e o esquartejamento.
Martim
Pereira preparara-lhes a cilada e eles tinham caído nela como uns tolos, por
sua própria culpa, pois desde aquela noite de lua cheia passada na oca de
Jacaúna não conseguira pensar em mais nada senão em Igapê. Recordar o rosto
doce e belo da amada fez Gonçalo esquecer as grilhetas e o porão e sentir de
novo os cheiros bons da floresta e os dedos do vento no seu corpo nu quando,
dias antes, perseguira com Pahanjara e Jabuti uma onça…
***
…Manhã
cedo, na segunda-feira, partira com os irmãos de Igapê e outros caçadores da taba para a floresta. Nu e com todos
os sentidos despertos, procurava imitar os companheiros que se deslocavam leves
e rápidos como sombras silenciosas pela selva densa e húmida, captando sons,
cheiros, ruídos quase imperceptíveis ao ouvido humano, na mais íntima comunhão
com a Terra. Uraçá caminhava com passos furtivos, buscando a presa
desprevenida, mas sempre um galho estalava sob os seus pés descalços, um
pássaro fugia num espalhafato de gritos e de asas quando a sua cabeça batia num
ramo invisível. Jabuti, sem uma palavra, veio pôr-se a seu lado para o ensinar
com o seu exemplo.
E,
por fim, o estrangeiro foi absorvido pela imensidão da selva, como se o seu
corpo branco se diluísse na ténue bruma suspensa das árvores que sempre vira
nas madrugadas que passara com Igapê. E sentiu de novo o espírito do uraçá que
o habitava debater-se dentro do seu corpo, na ânsia de se soltar para se lançar
nos ares e cair como um raio sobre a presa, cujo odor lhe dava agora em cheio
nas narinas.
– Jaguaretê! – murmurou Jabuti a seu lado,
também excitado pela proximidade da fera.
“Uma
onça dourada!” traduziu mentalmente o grumete e sorriu de satisfação:
“Que peça formidável!”. E, de repente deixou de ser Gonçalo, o Assanhado,
Uraçá ou mesmo um homem, para se tornar num temível predador atrás da sua
vítima, aproximando-se dela a favor do vento, silencioso e invisível como um
fantasma e, logo, com o coração a bater forte e o sangue a latejar nas fontes,
desferir com o arco a seta embebida em curare e perseguir em corrida veloz a onça
ferida, alcançando-a enfim para lhe dar o golpe final.
De
regresso à taba, com as presas
suspensas em grossas canas carregadas aos ombros e tendo a onça como principal
trofeu, os caçadores foram de súbito imobilizados por um formidável rugido, ali
bem perto, que quase lhes gelou o sangue nas veias.
– Que
cousa é esta? – perguntou Uraçá em português, rasgando o silêncio absoluto da
selva que parecia ter deixado de respirar.
–
Jaguara! – sussurrou ainda mais baixo Jabuti e os seus olhos escuros tornaram-se
ainda mais negros.
– Jaguar, “o que mata de um salto”, se o meu
traslado me não engana! – murmurou Gonçalo, entre dentes, com um arrepio a
percorrer-lhe a espinha ao lembrar-se de que os portugueses chamavam tigre a
esta alimária e tigre, segundo os mais velhos, era o bicho mais perigoso e
mortífero que algum caçador podia encontrar no mundo.
Pahanjara acercou-se deles para trocar algumas palavras
com o irmão. Era o melhor caçador da tribo e sabia que quando o rei da selva
boceja e atroa os ares com o seu formidável rugido, o silêncio desce pesado de
medo, a preguiça aí imobiliza-se nos ramos mais finos das árvores, para
que os líquenes que lhe crescem no pêlo a transformem num monte de verdura, os
tapires e as capivaras correm a esconder-se entre o mato ou nas tocas, os
pecaris ou porcos selvagens agrupam-se na defensiva e os caimões deslizam
lestamente para a água, porque o temido predador vai dar início à sua caçada e
nenhum animal ou homem está a salvo pois não há presa que ele desdenhe.
–
Jaguara! – disse Pahanjara a Uraçá, com um
sorriso, tocando na sua cicatriz e o estrangeiro compreendeu que o jaguar e o
caçador eram velhos inimigos.
Jabuti sabia da ânsia do irmão em conquistar o trofeu que
lhe faltava, ao vencer a criatura que pela astúcia, força e agilidade fora
feito totem da sua tribo e quase o matara há tempos atrás, para receber com a
sua morte o espírito indomável que o habitava. Então ofereceria a pele ao Xamã
Jacaúna e mudaria o seu nome para Jaguara, o que mata de um salto. Mas
tinha de o fazer sozinho, numa luta singular, embora pudesse levar consigo dois
companheiros para testemunharem a sua coragem e cantarem a sua vitória ou
recolherem os restos mortais para os levar à taba dos seus antepassados e
Pahanjara já tinha escolhido Jabuti e Uraçá para o acompanharem.
Os dois irmãos lamentavam não poder explicar ao
estrangeiro como o honravam ao convidá-lo para partilhar com eles o momento
quase sagrado, mas sabiam que, de toda aquela gente vinda nos grandes pássaros
de madeira, ele era talvez o único de alma pura, pois não podiam esquecer que,
na cerimónia do pericá, Tupã lhe concedera o dom da visão e da transfiguração.
Deixaram os restantes caçadores à espera, sentados na camada de folhas que
cobria o solo, com a caça ao lado, o grumete apressou-se a seguir os amigos
cuja gravidade lhe mostrava que pretendiam fazer algo importante e maldizia-se
por não entender a sua língua.
Caminhavam em silêncio, na direcção de onde partira o
rugido, os dois nativos atentos aos sinais do chão e das árvores. Jabuti, de
repente apontou para o grosso tronco de uma ubiratinga onde se viam dez fundas
estrias feitas por poderosíssimas garras muito acima das suas cabeças. Da
garganta de Pahanjara saiu um tremendo rugido, que fez estremecer Gonçalo, pois
fora em tudo semelhante ao que ouvira ao tigre ou jaguar, como lhe chamavam os
gentios, ouvido momentos antes. A resposta não se fez esperar e a voz do
predador ecoou mais perto e ameaçadora e toda a selva pareceu vibrar de tensão
como uma corda prestes a rebentar. Mas o animal não se mostrou e os caçadores
avançaram quase tão lentos e silenciosos como a preguiça aí, até aos
bordos de uma pequena clareira deparando com uma cena que deixou Uraçá sem
pinga de sangue. Um jaguar de cerca de dois metros de comprido defrontava a
mais estranha criatura que os seus olhos haviam visto até àquele momento.
– Tamanduá[62]!
– sussurrou Jabuti para Uraçá, ao mesmo tempo que olhava para o irmão que
parecia contrariado.
Era um animal do
tamanho de um galgo mas muito robusto, com um rabo peludo mais comprido do que
o corpo, com as sedas[63]
cinzentas, grossas e longas como as dos cavalos, e uma faixa preta bordejada a
branco desde a face até ao peito. Estava de pé sobre as patas traseiras
semelhantes às de um urso, a cabeça pequena e alongada por um focinho em forma
de funil fazia-o parecer maior. Uma língua de três ou quatro palmos, redonda e
grossa como uma minhoca, agitava-se de fúria e a cauda erguia-se por cima da
sua cabeça como um leque de plumas. Com os braços lançados para a frente, em
posição de ataque, agitava com espantosa destreza as mãos munidas de três
garras compridíssimas e aceradas como estiletes diante do rei da selva, como se
estivesse a esgrimir.
O jaguar, com as patas dianteiras esticadas, a cabeça
baixa e os quartos traseiros erguidos como um gato à caça, rosnava de furor e
fome, mostrando no peito ensanguentado que já se aproximara demasiado ou
descurara a guarda e não parecia decidido a repetir o salto, embora fosse uma
fera portentosa, com uma cabeça tão grande como a de um novilho, de expressão
feroz. Gonçalo nunca imaginara poderem existir gatos selvagens daquele tamanho,
por mais histórias que tivesse ouvido sobre eles. Era de cor amarelada, mais
clara na barriga e todo malhado de rosetas escuras, os olhos brilhantes e a
cauda erguida a mover-se lentamente da esquerda para a direita pareciam querer
enfeitiçar a presa.
Pahanjara soltou de novo o rugido do predador e o jaguar
pareceu hesitar, confuso, sem saber o que fazer e virou a cabeça em direcção ao
som. O tamanduá aproveitou a distracção do seu inimigo para baixar as guardas e
desaparecer na selva, numa desajeitada e bamboleante corrida das suas quatro
patas. Uraçá, contendo a respiração, viu o amigo entrar na clareira para
desafiar a fera, tão vulnerável na sua pele nua e desprotegida, levando como
armas a faca de pedra à cinta e o arco com as setas. O jaguar fixou nele os
olhos amarelados e, por sua vez, lançou o rugido desafiador do senhor do
território face a um intruso. Lambeu o sangue do peito e os seus perseguidores
puderam ver os lanhos profundos rasgados pelas garras do o urso formigueiro
gigante.
Pahanjara imobilizou-se e Gonçalo, apesar do perigo que o
amigo corria, admirou a beleza do quadro composto pelo homem e a fera, duas
criaturas de formas perfeitas, uma cor de cobre a outra dourada e negra,
medindo-se e avaliando-se contra o fundo verde esmeralda da selva. De repente,
com um impulso poderosíssimo das patas posteriores, o jaguar saltou,
estirando-se no ar, com as garras para a frente, a pata direita ligeiramente
inclinada para desferir o golpe que derrubaria o inimigo. Mas a tremenda patada
apenas feriu de raspão o ombro do caçador, pois, com igual destreza e
rapidez, apesar do embaraço do arco,
Pahanjara atirou-se para o lado, rolou o corpo pelo chão e, pondo-se de pé de
imediato, com uma breve e veloz corrida logrou pôr alguns metros de distância
entre ele e a gorada fera e preparou o arco.
O jaguar, vendo fugir pela segunda vez a presa, pareceu
perder igualmente o interesse na caçada e, lançando de novo o seu rugido
assustador, fez menção de abandonar a clareira. Jabuti saltou do seu
esconderijo, de arco em riste, mostrando-se ao animal para lhe impedir a
retirada e Uraçá fez o mesmo, do outro lado, dominando o medo que lhe fazia o
suor escorrer frio pelas costas. A fera, sentindo-se acossada por três
inimigos, optou pela fuga e vendo a saída cortada, lançou-se num salto elástico
sobre o tronco de uma enorme árvore, amarinhando destramente até à protecção
dos grossos ramos, onde se quedou rosnando arrogante e mostrando os dentes
ameaçadores.
Pahanjara avançou, com a longa seta posta no arco e parou
à distância de tiro. O jaguar tomou a posição de ataque sobre o grosso tronco
da árvore. Homem e fera fitaram-se de novo, selando o seu destino: um dos dois
teria de morrer. E o jaguar com um ronco surdo lançou-se do alto, os beiços
arreganhados expondo os enormes dentes aguçados, as patas dianteiras estendidas
com os dedos afastados e as garras de fora, polidas e curvas como minúsculos
punhais.
A seta apanhou-o em pleno voo, cravando-se-lhe no
coração, imobilizando-o um instante no ar e, com um estremecimento de todos os
músculos do corpo, a fera abateu-se aos pés do caçador que acabara de
conquistar o almejado troféu que lhe traria a fama e o respeito de todos os
clãs. Jabuti e Uraçá correram a felicitá-lo e logo cortaram duas grossas varas,
onde suspenderam o pesadíssimo jaguar, prendendo-o com pedaços de cipó, as
duras lianas usadas pelos nativos para inúmeras tarefas. Com dificuldade
tomaram os varais aos ombros e, com as pernas a tremer sob o peso da carga,
seguiram oscilando atrás de um Pahanjara a estoirar de orgulho e felicidade, ao
encontro dos companheiros que os esperavam para regressarem à povoação.
Depois, tinham sido recebidos em triunfo por toda a tribo
que veio admirar as belas capturas que o filho do Pajé e o moço estrangeiro tinham depositado aos pés de Jacaúna.
Pahanjara relatou em muitas palavras, recheadas de grandes gestos, o feito de
Uraçá, Jabuti contou a gloriosa luta do irmão contra o jaguar e, desta vez,
Uraçá falou também na sua estranha língua
da vitória do grande caçador Tupi, Pahanjara-Jaguara, escutado com muita
atenção e agrado por todos os homens no círculo das fogueiras que se não podiam
entender as palavras compreendiam os gestos e as entoações da voz do filho
adoptivo de Jacaúna.
O Pajé fizera
então um longo discurso de que Gonçalo apenas percebeu meia dúzia de palavras e
o seu nome de caçador ligado ao de Pahanjara e por isso soube que lhe era
concedida uma grande honra, tanto maior por ser estrangeiro e sentiu-se muito
orgulhoso. Viu Igapê entre os ouvintes e leu adoração nos seus olhos. As
façanhas do emboaba e do maior caçador da tribo iriam ser festejada por todos
nessa noite, na festa das fogueiras, e Uraçá receberia a sua primeira pena de
tucano, como todo o moço do clã que desse provas da sua virilidade.
Depois de comer, tinham ido para a praia ajudar os
portugueses a encher os barris de água na nascente e a transportá-los para os
batéis, a pescar e a salgar o peixe ou a
colher os frutos das árvores em grandes cestos que os estrangeiros
levariam no bojo dos seus navios. Os descobridores de novos mundos e os homens
da floresta andavam misturados nas tarefas, já sem desconfiança ou medo,
jogando e competindo uns com os outros como se fossem velhos conhecidos.
Gonçalo vestira as bragas, mas mesmo assim teve de suportar os chistes dos
companheiros até o Campanário
aparecer e pôr cobro à surriada.
– Ó Assanhado,
trazes as mesmas cores ou ‘tás
pintadinho de fresco?
– Olhem-m’aquela pele sem um pêlo! Nã tem dúveda, inté parece mais moça que
moço!
– Quem foi que te fez a barba, ó Assanhado, qu’ eu
também ando precisado de barbeiro?
– Já nã
basta os capitães deixarem o rapaz de manhã à noite nas mãos dos selvages que
lhe fizeram este lindo serviço? – O Campanário
continuava desconfiado quanto às boas intenções do povo pardo para com o amigo. – Inda vos burlais dele com tanta ruindade?
– Ó home, nã t’amofines, qu’isto é só manganice! A gente
‘té gosta do Assanhado…
– É a inveja que vos faz falar – dissera Gonçalo,
sorrindo sem zanga.
– Ora aí é que tens razão! Que a gente anda a dormir em
naviarras malcheirosas e tu em redes perfumadas...
A chegada de Diogo Dias com Afonso Ribeiro e outros dois
homens degredados pôs fim às brincadeiras dos matalotes. O Capitão disse:
– O Capitão-mor quer que nos leves a passar a noite na
aldeia dos teus amigos emplumados.
– Leva também o gigante ferreiro, p’ra irmos mais
descansados – acrescentou o degredado.
Campanário não pareceu muito encantado com a
ideia do outro, mas não disse nada. Tão pouco Gonçalo ficou satisfeito. Não
podia desobedecer a uma ordem do Capitão-mor, mas não sentia o mínimo desejo em
levar homens condenados à morte por crimes cometidos no Reino até à taba do clã de Jacaúna, uma gente boa
e confiada que o adoptara como um filho.
– Senhor Capitão, ainda conheço mal os seus usos… –
murmurou.
Diogo Dias percebeu o medo do grumete e apressou-se a
sossegá-lo:
– Levamos presentes e tudo faremos para não os molestar.
Afonso Ribeiro disse também com um sorriso:
– Tu nos mostrarás como devemos fazer para respeitar os
seus costumes.
Gonçalo acabara por conhecer a história deste degredado
que, embora condenado à morte, não era um criminoso como os outros. O seu crime
até lhe conquistara a admiração dos matalotes, pois dera cabo do fidalgote que
lhe desrespeitara a mulher, mas como era um Zé-ninguém e se atrevera a pôr a
mão num fidalgo e o matara, dera logo forca. Só escapou dela por se ter
oferecido para as naus, a fim de ser dos primeiros a desembarcar a ver do
perigo ou a quedar-se nas terras estranhas a viver com os nativos, aprendendo a
língua e os costumes. Era um homem de poucas falas mas o Assanhado sentiu que lhe fazia uma promessa e ficou mais
descansado.
***
Agora, acorrentado no porão, Gonçalo perguntava a si
próprio se o velho feiticeiro não teria razão para ter medo. A cobiça dos reis
pelo ouro e pela prata – contara-lhe seu pai – já dera causa à destruição de
muitos povos e de lugares tão belos e misteriosos como aquele. No Domingo
anterior, vira como Jacaúna tentara fazer-se entender pelo Capitão-mor, junto
do rio, chegando a tirar a Pedra Verde do seu lábio para a pôr na boca de
Cabral, o que muito divertira os portugueses, mas o grumete reconhecera naquele
gesto um enorme sacrifício do velho feiticeiro, cujo medo aos estrangeiros e
aos desastres que eles não deixariam de trazer aos Tupiniquins o levara a
querer abdicar dos seus poderes em favor do temível chefe dos Emboabas.
Gonçalo tinha dificuldade em manter o fio dos seus
pensamentos, com as correrias e guinchos das ratazanas a explorarem o porão,
esvaziado das sacas e caixas de alimentos. A angústia subia-lhe de novo à
garganta prestes a sufocá-lo. Doía-lhe acima de tudo partir sem ver Igapê, sem
lhe poder contar a verdade ou dizer-lhe adeus. Por isso queria guardar na
memória todos os momentos passados naqueles cinco dias, gravá-los como num
livro para os reviver enquanto o deixassem vivo:
Na taba, os hóspedes haviam sido
recebidos com todas as honras e o Assanhado
de novo na sua pele de Uraçá viu, cheio de contentamento e gratidão, Diogo Dias
tratar o Pajé Jacaúna e
os moacaras, os
principais membros do clã, com o acatamento devido a um Príncipe e a Grandes
Senhores, oferecendo ao feiticeiro uma camisa mourisca e um sombreiro de plumas
e dando aos outros chefes presentes de pouco valor – cascavéis, carapuças
vermelhas e folhas de papel – mas que os encheram de espanto e lhes deram
grande prazer. Jacaúna entregou ao Capitão uma formosa capa feita de penas de
muitas cores.
– Este é um presente digno d’El-Rei D. Manuel! – bradou
Diogo Dias encantado com a oferta e curvando-se diante do Pajé. – O Capitão-mor por certo o
há-de querer enviar a Sua Majestade.
O Pajé sentara a seu lado Diogo Dias para a
refeição da noite e os três degredados tiveram lugar de honra entre os
principais moacaras, vestidos com os seus ornamentos de festa. Jacaúna
sentia que alguns destes estrangeiros eram de nobre coração, como aquele que
sentara à sua esquerda, mas os espíritos diziam-lhe que outros iriam chegar e o
seu povo sofreria. Por isso tentara dar a Pedra Verde do Poder ao Grande Chefe
dos Emboabas, para que, satisfeito, se fosse para sempre da sua terra,
mas ele não era um homem escolhido de Tupã e não sentira vibrar o coração da
Pedra, antes a recusara como se de um malefício se tratasse. O ancião suspirou,
saudoso da sua juventude de formidável guerreiro quando expulsara muitas tribos
inimigas dos seus territórios. Mas, agora, se o Deus do Trovão não ouvia os
rogos do seu Pajé, ao velho xamã[64]
só restava aceitar, resignado, o seu destino.
O Campanário
não quisera arredar pé do sítio onde estava o Assanhado, entre os mais jovens caçadores do clã, e comia as peças
de carne assada com os inhames fumegantes, bebendo grandes tragos de cauim, uma estranha bebida fermentada
de agradável sabor. Parecia já menos desconfiado, talvez devido ao vinho ou por
estar a ser servido pelas duas primas mais velhas de Igapê, maravilhadas com o
tamanho de Mateus. A presença do amigo entre o povo pardo mostrara ao Assanhado
como esta raça era graciosa, com gente de bons corpos, no entanto nem o mais
forte caçador da taba lograva
chegar ao ombro do Campanário. Depois
da refeição, a um sinal do Pajé,
as mulheres foram buscar as cangoeiras da erva-santa
para o fumo da amizade com os Portugueses e Gonçalo, por zombaria, não os
preveniu daquilo que os esperava, apenas trocou um olhar cúmplice com Pahanjara
e Jabuti que esconderam o seu sorriso.
– Ó mê capitão, os homes são doudos! Onde se viu tal
cousa?!
– Atão nã é que metem o rolo em brasa pela bocarra
dentro!!!
– Calai-vos e fazei o que eu fizer, sem má cara ou
desprazer – ordenou o Capitão.
Jacaúna passou a cangoeira ao seu hóspede e Diogo Dias
recebeu-a sem hesitar e sem mostras de desagrado ou receio. Sempre aceitara as
cerimónias de outros povos, participando nelas com alegria quando lho permitiam
e, mesmo se o assustavam ou lhe desagradavam, tudo fazia para esconder as suas
emoções. Se em certos lugares de África já comera insectos vivos e na Índia tinha
mascado bétele[65], por
certo lograria vencer também aquela provação.
– O mê capitão vai-se esbrasear! Nã faça isso, mê Senhor!
Mas Diogo Dias levou o rolo à boca e puxou o fumo, como
vira fazer ao velho xamã, procurando não se engasgar nem queimar, soltando-o em
seguida pelo nariz. Sentiu-se todo a arder por dentro, porém, com enorme
esforço de vontade, conseguiu dominar a tosse e as lágrimas provocadas pelos
olhos a picar e passou a cangoeira ao parceiro do lado.
– Ó mê capitão, eu cá nã faço isso qu’é cousa do demo!
– Ah, isso é que fazes! – O capitão dava a ordem sem
altear a voz e continuando a sorrir, para que os nativos não se apercebessem da
recusa dos seus homens.– E sem mostrares temor ou desagrado, para verem que
nada faz medo ou espanto aos portugueses.
Afonso Ribeiro, calmo e sorridente, fumou a cangoeira
como um nativo, com um “Isto até nem é mau de todo!”, mas nem mesmo a
ordem do capitão Diogo e o medo do castigo conseguiram evitar que os outros
dois degredados se engasgassem e tossissem, fazendo rir os seus hospedeiros.
Uapê e Arati prepararam com ternos cuidados uma cangoeira para o gigante
emboaba que as enchia de admiração e trazia em grande alvoroço, fazendo-as
ignorar as atenções dos seus pretendentes, tal como a prima fizera. Seriam
felizes se o gigante branco escolhesse as duas para esposas, pois sempre haviam
partilhado tudo na vida e não havia razão para não partilharem o amor do marido
entre ambas, em vez de o fazerem com mulheres de outros clãs. Por isso lhe
estenderam ao mesmo tempo a cangoeira acesa, para que ele percebesse que
estavam prontas para o amor e para o servir como esposas. Mateus recebia
embevecido as atenções das duas beldades:
– Diz-me que não estou a sonhar, Gonçalo! Que fiz eu para
merecer tal sorte?!
– Já não desconfias deles, Mateus? Não tens medo que te
cortem a garganta?
– Como podia eu adivinhar que estava no Paraíso? – e,
sorrindo enlevado para Uapê e Arati, meteu na boca o fino rolo de ervas e puxou
uma longa fumaça, como se em toda a sua existência não houvesse feito outra
coisa:
– Não há vida melhor do que esta! Quem me dera poder
quedar-me aqui!
Gonçalo sentiu que as palavras do amigo eram como um eco
do seu próprio desejo e sorriu com melancolia, olhando o rosto suave e terno de
Igapê. Por fim os nativos cantaram e dançaram as suas danças de caça e de
guerra, para mostrarem aos estrangeiros como eram bravos e fortes e os
portugueses bailaram com eles até à hora de partirem, pois só a Uraçá – o homem dos dois povos – era permitido
quedar-se na oca.
***
O Campanário
agitou-se no sono, gemendo e o grumete foi arrancado às suas recordações.
Mateus tinha sido brutalmente espancado pelos três rufiões a mando de Martim
Pereira, aproveitando um momento em que havia muito pouca gente a bordo, pois
só com o gigante desacordado poderiam acercar-se do Assanhado sem perigo nem estorvo e conseguir os seus fins – apanhar
o mapa e livrar-se ao mesmo tempo de uma testemunha embaraçosa. Ser posto a
ferros naquelas condições teria dado cabo de qualquer um, mas o ferreiro era
feito de outra massa, forte como Vulcano.
– Umas horas de sono e fico como novo – dissera nessa mesma noite. – Amanhã eles que se cuidem!
Gonçalo sorrira na escuridão. Mesmo recuperando as
forças, que poderia ele fazer preso com cadeias à bomba ou a uma grossa argola
de ferro, como agora, no porão de uma nau? Todavia não dissera nada, para não o
minar com o seu desespero. Vendo-o respirar mais calmo, encostou-se à viga que
o amparava e pousando a cabeça nos joelhos, esgotado de angústia, deixou o seu
espírito evadir-se de novo...
Aquela terça-feira fora um dia de muito trabalho em
terra, pois havia mister de lavar roupa no rio, cortar e armazenar lenha e, a
pedido do Padre Henrique, fazer uma grande cruz de madeira para assinalar a
passagem da Armada por aquele paraíso. Os nativos ajudavam no corte e
transporte da lenha e o Capitão-mor ordenou que se fizesse uma carga de pau-brasil
para enviar ao reino. Tribos aparentadas ao clã de Jacaúna tinham vindo das
suas tabas mais afastadas para
ver os estrangeiros, admirar os seus feitiços e trocar com eles os presentes da
amizade. Eram mais de duzentos, andavam desarmados e o Assanhado admirava-se do modo confiante e brincalhão como se davam
com os portugueses, indo nos batéis, entrando e saindo das naus com perfeito
à-vontade.
Cabral queria partir para a Índia no Sábado, dia 2 de
Maio, a fim de não perder a monção[66],
mas precisava de mais informações da terra para enviar a El-Rei D. Manuel e
Gonçalo recebera ordens de Diogo Dias para vir buscar o grupo e levá-lo de novo
à aldeia dos seus amigos, a ver se desta vez os deixavam passar lá a noite como
desejava e insistia o Capitão-mor. Foram novamente recebidos como hóspedes
amigos e tudo se passou como no dia anterior, com Mateus cada vez mais
confiante e cativado por Uapê e Arati que lhe pagavam na mesma moeda,
servindo-lhe os melhores bocados do assado de tatu e as frutas mais saborosas.
Quando chegou a hora de Jabuti e Pahanjara levarem os
hóspedes carregados de presentes aos batéis, ninguém logrou despertar o Campanário de uma terrível bebedeira
causada pelo cauim que durante
toda a noite as duas moças não tinham cessado de lhe deitar na taça de casca de
coco. Os portugueses viram ali um bom pretexto para passar a noite na taba, mas apesar da sua insistência para lá dormirem o Pajé não consentiu, pois os
estrangeiros tinham a pele branca como a dos espíritos dos antepassados mortos
e Jacaúna temia que eles fossem criaturas enviadas por Anhangá, o espírito maléfico das trevas, para trazer ruína e
morte ao seu clã. Assim, resmungando protestos face à firme recusa dos nativos,
Diogo Dias e os seus companheiros recolheram às naus, sendo o Campanário transportado numa rede por
seis dos mais fortes caçadores da tribo.
Na quarta-feira, Pedro Álvares Cabral passara quase todo
o dia na naveta de Gaspar de Lemos, assistindo ao despejar dos mantimentos e
sua distribuição pelos outros navios, por isso, com grande pena da marinhagem,
só Sancho de Tovar foi a terra com um recado de Pêro Vaz de Caminha ao Assanhado para ir no dia seguinte pela
manhã à nau capitânia, pois o escrivão queria registar na carta d’El-Rei as
impressões dos últimos dias passados nas Terras da Vera Cruz e desejava ver os
dois irmãos seus amigos, para melhor os descrever a Sua Alteza.
O grumete olhava preocupado o batel a afastar-se, levando
Itâna e Taari, dois dos guerreiros mais fortes do clã que o sota-capitão
convidara para passar a noite na sua nau. Cada vez se sentia mais pertença da
tribo e com maior desconfiança quanto às futuras intenções dos portugueses para
com a sua gente. Temia que alguns dos
seus amigos fossem raptados e levados à força para o reino, a fim de serem
exibidos como animais raros. Gostaria de quedar-se com eles para sempre, viver
como caçador ou guerreiro, amando Igapê na lagoa da floresta. Com estes
pensamentos encaminhou-se para a taba de
Jacaúna
Quer na taba
quer na oca já ninguém
estranhava a sua presença, desde que não aparecesse em trajos de marinheiro e
Uraçá tinha o cuidado de se despir e esconder as roupas antes de entrar na
aldeia. Todos sabiam que ele amava a filha do Pajé e por isso vinha servir na oca do feiticeiro e competir com
os outros pretendentes pelo prémio cobiçado – Igapê, a mais bela flor da
floresta. Embora fosse uma criatura estranha, oriunda de terras distantes e sem
clã, estavam dispostos a aceitá-lo se essa fosse a vontade de Jacaúna e da moça
(já não era segredo para ninguém que Igapê dera estrangeiro a flor da sua
virgindade, chegando mesmo a afastar pretendentes que serviam o Pajé há muitas luas, quando o camucim[67]
de sua filha guardava apenas doze castanhas de caju, uma por cada ano de sua
vida, mas a menina era já uma promessa de beleza. Agora, sendo catorze o número
de castanhas na cabacinha, Igapê tornara-se o orgulho da taba e fora a virgem mais cobiçada de
toda a tribo.
Uraçá partia com os seus amigos para a caça e para a
pesca e, tal como eles, vinha depor o fruto do seu trabalho aos pés do velho
chefe. Em tão curto tempo aprendera a remar na igara[68]
que deslizava veloz como um boto[69]
na corrente do rio e a equilibrar-se na jangada de troncos enquanto disparava
as longas setas do seu arco, através da superfície enganadora da água, até ao
alvo movediço e escorregadio dos grandes peixes. Pahanjara e Jabuti eram seus
mestres e seus cúmplices, prontos a darem a vida por ele mas exigindo-lhe o
esforço e a bravura de um verdadeiro herói. E, na ânsia de poder conversar com Igapê,
Uraçá aprendia ainda mais depressa a doce e poética língua tupi.
***
Pensar na partida, dentro de dois dias, punha-lhe um nó
na garganta. Não soubera o que dizer quando Igapê, na noite anterior, vendo da
praia os archotes acesos das naus, lhe perguntara por gestos, com os olhos
sombrios de angústia, quando partiria. Calara-se perturbado e agora doía-lhe
mais a saudade de não voltar a vê-la do que a sentença de morte a esperá-lo em
Lisboa, apesar da sua inocência. Martim Pereira levara a sua avante e ainda
receberia alvíssaras pela traição. O maldito espião tinha as costas quentes,
com um documento assinado por El-Rei dando-o como oficial d’armas da confiança
de Sua Alteza e que ele mostrara ao ser apanhado com o mapa na mão. Fora a sua
palavra, confirmada pelos três ajudantes, contra a de um grumete sem
testemunhas e o Assanhado perdera…
Nessa manhã de quinta-feira, Gonçalo fora transportado
num batel com Pahanjara e Jabuti à nau capitânia e, mal entrou, viu Itâna e
Taari sentados à mesa dos capitães, que se preparavam para ir a terra, comendo
lacão[70]
cozido com arroz e bebendo como fidalgos. O grumete conduzira os amigos até aos
aposentos de Caminha, no castelo da popa. Durante mais de uma hora contara
episódios, descrevera lugares, gentes e objectos ao escrivão, respondendo às
suas intermináveis perguntas, enquanto ele observava os dois nativos,
oferecendo-lhes de comer e de beber como a hóspedes de cerimónia. O escrivão
vivia rodeado de livros, de penas e tintas de escrever, num espaço onde mal se
podia mexer e os dois irmãos foram imediatamente cativados pelas folhas de
papel, umas já cheias da letra delgada de Caminha, outras ainda brancas à
espera das palavras. Quando Uraçá falava e o secretário molhava a pena de pato
na tinta, rabiscando alguns apontamentos, os nativos tomavam a folha na mão,
olhavam e cheiravam a tinta, com se estivessem ante um milagre ou um feitiço.
– Quando soubermos a sua língua ou eles falarem a nossa,
logo se tornarão cristãos, pois parecem bons e de espírito vivo.
– Mestre Caminha –
perguntara Gonçalo a medo, apontando os amigos –, vão levar alguns deles para o
Reino? Habituados a ser livres, morrerão…
– Não, podes ficar descansado – interrompera-o, sorrindo,
o secretário, compreendendo a preocupação do moço grumete. Gostava do rapaz,
pois parecia sensível e inteligente e tinha um excelente espírito de
observação, descrevendo as suas experiências com palavras precisas e estilo
fluente, quase cultivado. – Os capitães determinaram em Conselho não fazer
qualquer violência sobre esta gente, que é gentil e boa para se fazer cristã.
– Folgo muito de vos ouvir, Mestre Caminha, pois este
povo tem confiado em nós e não gostaria nada de os ver traídos.
– Serão cá deixados dois degredados para viverem com eles
e aprenderem a língua. Podes recomendá-los aos teus amigos para que sejam bem
tratados.
– Assim farei, meu senhor.
– Tens alguns estudos, moço? – perguntara Caminha numa súbita inspiração:
– Sim, mestre, leio e escrevo em português e latim.
Meu Deus, que sorte a sua! Tal como julgara, o rapaz não
era um zé-ninguém dos becos de Lisboa, mas um moço de boa formação e o escrivão
precisava de um ajudante para lhe tomar apontamentos dos lugares e das gentes
que iriam descobrir. Olhara-o com simpatia e perguntara:
– Queres ser meu escrivão-ajudante, durante o resto da
viagem? Serias aliviado das tarefas de grumete…
– Oh! sim, mestre! – respondera sem hesitar. – Eu vos
ficarei para sempre obrigado.
– Trataremos disso
durante a viagem e me contarás onde e como fizeste teus estudos.
Gonçalo saíra dos aposentos de Mestre Caminha com os dois
indígenas, já impacientes por se verem fechados há tanto tempo nessa espécie de
gaiola malcheirosa e depararam com uma multidão azafamada de matalotes e
nativos a carregarem a nau com fardos, barris e sacas de mantimentos,
despejados da naveta de Gaspar de Lemos e que o Capitão-mor mandara distribuir
por todas as naus. E o Assanhado não
pudera deixar de rir, vendo como a “ajuda” dos homens pardos aos marinheiros
causava mais atrapalhação do que prestava serviço. Pahanjara e Jabuti
deixaram-no e foram juntar-se ao grupo de ajudantes, muito divertidos com o
trabalho e o grumete aproveitou a ocasião para ir falar com o Campanário.
***
As sombras tornavam-se mais claras no porão, sinal de que
o dia começava a nascer, mas Gonçalo não conseguia dormir. Mais do que as
cadeias de ferro nas mãos e nos pés, pesava-lhe a dor de perder Igapê e o
sofrimento e vergonha que iria causar a sua mãe, em Lisboa, ao ser condenado e
justiçado pelo crime de traição. Quanta vezes se arrependera de não ter
denunciado o padrasto, mas pensara na mãe, na vergonha que ela sentiria por ser
mulher de um traidor sentenciado à morte e na mancha que isso seria na sua
honra, e preferira fugir.
Afinal a desonra era agora dele e ainda faria sofrer mais
a mãe quando o chegasse a saber. Acreditaria nas mentiras que lhe diriam dele
ou recusar-se-ia a pensar que o filho de João Lourenço era um traidor,
incapaz de respeitar a memória de seu
pai? O grumete, para afastar essas imagens que o desolavam, procurava relembrar
todos os pormenores da sua prisão, os erros cometidos e se por ventura poderia
ter agido de outro modo e desmascarado o espião:
Mal saíra da estância de Mestre Caminha, andara pela nau
à procura do Campanário que ainda
ninguém tinha visto nesse dia. Estranhou não o encontrar à sua espera e sentiu
essa ausência como um mau agouro. Tão pouco vira Martim Pereira e os seus
sócios.
– O teu amigalhaço precisa de ti! ‘Tá doente…
Falai
no mau… Era um dos malandrins. Alguma coisa sucedera a Mateus!
– Que lhe fizeram? – perguntou aflito. – Onde
está ele?
O
outro soltou um riso escarninho e afastou-se sem lhe responder. Gonçalo lançou-se em
corrida para o dormitório da marinhagem, por baixo do tombadilho. Doente? A
única doença de Mateus, em toda a sua vida, fora o mareio na nau.
Avistou o amigo deitado na esteira, no canto mais escuro do recinto, sem
se mexer.
–
Mateus! – gritou, assustado. – Que tens, Mateus?
De pé, encostado a uma das pesadas vigas de madeira, Martim Pereira
tinha um ar vitorioso e um sorriso cruel rasgou-lhe o rosto, quando o viu
chegar. Os outros dois valentões estavam sentados, um à cabeceira e o outro aos
pés do Campanário, prendendo-lhe as
pernas e, junto deles, três pesados cacetes não deixavam dúvidas quanto às suas
intenções.
–
Temos de praticar sobre um assunto sério – disse a voz arrastada do espião –, e
o teu amigalhaço recusou-se a ouvir. Tivemos de o aquietar.
Não havia ninguém por perto, com toda a agitação de mudanças e
desembarques. Gonçalo viu pelas marcas roxas e manchas de sangue no rosto que o
amigo fora barbaramente espancado. Os meliantes também não tinham saído ilesos
da contenda, pois as caras inchadas e o nariz partido de um deles mostravam
como o Campanário se defendera bem.
Cerrou os punhos e bradou:
–
Malditos sejais! Que quereis de nós?
– Vem mais
assanhado que de costume!
– Deve ser da
vida c’os selvagens!
–
O Assanhado agora chama-se Sarapintado! – disse um dos algozes,
carregando nas pernas de Mateus que, mesmo desacordado, gemeu de dor.
Sem ouvir as graçolas e os risos, o grumete gritou desesperado:
–
Que lhe fizestes? E porquê?
–
A carta de marear que roubaste ao teu padrasto, ladrãozeco – a
voz de Martim Pereira sibilou como um chicote. – É só isso que eu quero. Ou me dás a carta ou
ele morre.
Gonçalo estava encurralado, sem poder pedir socorro pois atrás de si já se postara
o patife que lhe dera o recado e se tinha vindo juntar à companhia,
cortando-lhe a retirada e impedindo qualquer marinheiro de se aproximar.
–
O cabeçudo tem cabeçorra de pedra! Só se veio abaixo à terceira cacetada!
– Agora vai ser
mais fácil, porque o trabalhinho ‘tá
meio feito!
– Depois, basta
atirá-lo borda fora. Inté já
temos ajuda.
Martim Pereira
aproximou-se enquanto o seu ajudante saltava sobre Gonçalo, agarrando-o por
trás e imobilizando-o. Mal tivera tempo de se defender quando um murro,
desferido com violência pelo chefe do bando, lhe acertou em cheio no estômago
fazendo-o dobrar-se em dois, mas apesar do mareio não vomitou. A vida no mar e
os últimos dias na floresta com os caçadores de Jacaúna haviam-no tornado mais
forte, porém não o suficiente para se desembaraçar de dois homens corpulentos.
– A carta?! – insistiu o chefe.
– Sois traidor, como o meu padrasto.
Nunca vos darei o mapa!
Novo soco, desta vez no ventre e Gonçalo sentiu um suor frio
escorrer-lhe pelo corpo. Dizer-lhes onde escondera o mapa seria morte certa
para si e para Mateus, pois mal os patifes deitassem a mão ao precioso
pergaminho, os dois grumetes deixariam de ter qualquer valor para Martim
Pereira que nunca se arriscaria a deixar escapar com vida as testemunhas da sua
traição. Gonçalo não podia ceder! Nunca mais, pensou cerrando os dentes e
recordando a sua jura antes de sair de Lisboa, nunca mais!
– O teu padrasto é
apenas um peão neste jogo de xadrez. Mas chega de conversa! A naveta parte
amanhã e quero que a carta de marear vá nela.
Os golpes sucederam-se, precisos e dolorosos, mostrando que quem os dava
tinha uma longa prática e conhecia as partes mais sensíveis do corpo, onde a
dor podia ser tão insuportável que obrigava a vítima a soltar a língua mesmo
contra vontade. O grumete sentiu o cérebro entontecido, os olhos enevoados e um
vómito azedo sujou-lhe a camisa, quando um novo soco lhe martelou o estômago
com a força de um malho.
– Ele não fala,
chefe. E está quase desacordado.
O espião estava
cada vez mais impaciente, pois o tempo passava e o gaiato não cedia, ainda
acabavam por dar nas vistas e teriam de aclarar muitas coisas difíceis de explicar.
Nunca lhe passara pela cabeça que um rapazelho daquela idade fosse um osso tão
duro de roer, aguentando uma surra daquelas melhor que homem feito. Se
continuasse o castigo, não tardaria a cair desacordado e não lhe serviria de
nada, tinha de usar outros meios para o fazer falar:
– Se aguentas a
dor, talvez não sofras assistir à morte do teu amigo.
A um gesto
seu, o malfeitor sentado à cabeceira de Mateus passou-lhe em volta do pescoço
um laço de corda com um nó corredio onde entalara um pedaço do duro pau-brasil.
“Um garrote!” pensou o grumete estremecendo, recobrando um pouco os sentidos,
“Vão garrotá-lo”. A um novo sinal de
Pereira, o homem começou a torcer o pau, fazendo a corda apertar-se em torno do
pescoço do Campanário, cujo rosto se
ia tornando vermelho, enquanto, ainda com uns restos de consciência, agitava as
mãos amarradas como para se libertar. O outro meliante quase deitado sobre ele
imobilizava-lhe as pernas.
– Deixai-o em paz
que nada tem a ver com isto! – Gonçalo contorceu-se com violência,
procurando libertar-se dos braços que o prendiam:
– Onde está
o mapa? – repetiu friamente o homem.
Mais
duas voltas ao garrote e Mateus abriu a boca sufocado. O ar saía com um som
estranho, como se o Campanário se
estivesse a afogar. O enorme peito agitou-se, o gigante estrebuchou e quase
atirou com o seu algoz ao ar.
– Eh,
agarra-lhe bem nas pernas ou este perro raivoso inda se safa!
– Mesmo apagado inda estrebucha que
nem touro em garraiada!
– Pela vez
derradeira, onde está o mapa?
Para
acabar com a tortura do amigo Gonçalo revelou o esconderijo e Martim Pereira,
deixando-os nas mãos dos seus homens, foi buscar o precioso documento.
***
A um
rangido mais forte de cordas e madeiras, Mateus abriu os olhos e levou a mão à
cabeça ferida, abafando um gemido:
– Perros
malditos! Se lhes ponho as mãos em riba… – fechou os punhos formidáveis, como
se entre eles apertasse o pescoço dos inimigos. – Apanharam-m’ à traição,
quando inda estava meio
desacordado da bebedeira. O raio da bebida dos teus amigos é boa que se farta.
Com’ é que se chama?
– Cauim – disse Gonçalo, não podendo deixar
de sorrir por Mateus se lembrar da bebida, quando estavam metidos num sarilho
terrível.
– Pois quem
me dera uma cabacinha de cauim, que tenho a boca seca como pergaminho! – De
súbito calou-se e olhou para o Assanhado que a escassa luz mal deixava ver. – A
carta de marear… eles apanharam a carta?
– Sim.
– Mas eu nã lhes disse nada, apesar de ter os
quatro a malharem em mim como ferreiros numa bigorna! – Mateus estava
consternado. – Só se falei desacordado…
– Fui eu que falei, antes que dessem cabo de
ti – sossegou-o Gonçalo,
começando a contar-lhe o resto da aventura:
Martim
Pereira voltara triunfante, trazendo o cobiçado mapa embrulhado num trapo:
– Sim, senhor, tiro-te o meu chapéu! Ali mesmo à vista de todos e
ninguém conseguia dar com ele!
– Já tendes
o que queríeis, deixai-nos agora em paz!
– P’ra ires
despejar tudo aos ouvidos do Guardião ou d’algum dos teus capitães amigalhaços?
Isso é qu’era bom!
Tal como
calculara, os patifes iam calá-los para sempre, aproveitando a confusão e a
azáfama que reinavam nas naus. Pereira pegou no arco e nas setas que Gonçalo
deixara cair na luta e disse:
– Ao rapazola podemos fazer de forma a que pareça ter sido morto
pelos seus amigos sarapintados. Quanto ao Campanário, levai-o lá para cima como se ainda estivesse bêbado e aproveitai a
balbúrdia para o lançar borda fora. Deste trato eu.
– Não! – gritou o grumete ao ver os
dois malandrins soerguerem o amigo e começarem a arrastá-lo, como se o
amparassem mas vergados sob o seu peso, tentando levá-lo para o convés.
Com um
repelão Gonçalo logrou soltar-se e lançou-se com a fúria do desespero sobre
Martim Pereira, apanhando-o de surpresa.
– Que se
passa aqui?
Distraídos
da vigilância pelo aceso da luta, ninguém dera pela chegada do Mestre da nau,
acompanhado por Pêro Vaz de Caminha, Pahanjara e Jabuti. Quatro soldados
serviam-lhes de escolta porque o Mestre nunca se sentia seguro tendo por perto
estes homens nus e pintados, tão selvagens que nem as naturas escondiam. O
escrivão decidira ir a terra com o grumete e os seus amigos nativos para passar
com eles a noite e saborear a aventura que o moço tão vivamente lhe descrevera,
a fim de a poder relatar com maior fidelidade a Sua Alteza. Perguntara por
Gonçalo ao Mestre da nau e este, por deferência para com o secretário do
Capitão-mor, decidira ir em pessoa procurá-lo. Grato pela gentileza, Caminha
acompanhara-o levando consigo os dois homens da floresta.
Sentindo-se
em perigo, apanhado nas malhas da sua própria rede, Martim Pereira
contra-atacou, lançando mão dos seus últimos trunfos:
– Traição,
Mestre Fernando, tendes aqui dois traidores que caçámos como ratos!
– Traição? –
repetiu Caminha com estranheza. – Falais desse grumete?
Gonçalo quis falar, mas o ajudante de Pereira
voltara a dominá-lo e atirara-o ao chão, mantendo-lhe o rosto esborrachado
contra as tábuas do soalho. Pahanjara e o irmão, vendo o gigante ferido e o
amigo a ser maltratado, lançaram-se contra os algozes com um grito de guerra,
empunhando as suas facas de pedra afiada. Apanhado de surpresa, o meliante
quase soltou Gonçalo que, para os amigos não serem feridos ou mortos pelos
soldados, conseguiu dizer em tupi a palavra sussurrada pelos caçadores, na
floresta, para se ficar imóvel e não assustar a presa. Os dois irmãos pararam,
hesitantes. Os soldados tinham desembainhado as espadas, mas Pêro Vaz de
Caminha ordenou:
– Quedos! Guardai
as vossas armas!
Embora
relutantes, os soldados obedeceram. Martim Pereira prosseguiu, já refeito do
sobressalto:
– Ando desde
Lisboa no rasto do marau que é espião a soldo de Castela e roubou uma cópia da
carta de marear com a derrota para a Índia de D. Vasco da Gama.
– Mas isso é
alta traição! Não posso crer que esse moço…
– Perdoai,
Mestre Caminha – atalhou com secura o espião –, mas tenho aqui as provas e um
documento assinado por El-Rei nosso Senhor, conferindo-me poderes para dar voz
de prisão a qualquer homem e proceder como achar melhor em caso de crime de
lesa-majestade ou traição! Nem mesmo o Capitão-mor pode desacatar uma ordem de
Sua Majestade.
O
espião entregou o mapa e o documento a Pêro Vaz de Caminha. O regimento era
autêntico, pois o escrivão conhecia muito bem a assinatura do seu monarca e o
mapa era igual aos dos capitães de cada nau, trazidos no maior segredo. Sentiu
o coração pesado de pena:
– Tendes
poder para os prender, mas traição é um crime que só deve ser julgado no reino
e os prisioneiros têm direito a defender-se.
– Por certo,
Mestre Caminha. – apressou-se a concordar Martim Pereira.
Intimamente
amaldiçoava o escrivão e as suas ideias humanistas. Seria muito melhor se o
Capitão-mor, num julgamento sumário, enforcasse logo os dois rapazes no mastro
principal, resolvendo-lhe o caso; por outro lado, se Pedr’ Álvares Cabral lhes
permitisse contar a sua história e viesse a acreditar no grumete, o feitiço
podia virar-se contra o feiticeiro. Tinha de dispor deles quanto antes, mas de
momento era melhor não insistir:
– Não sou juiz
para os julgar e condenar, mas aconselho-vos a pôr estes traidores em ferros, à
bomba da naveta que vai para Portugal, onde El-Rei decidirá do seu destino. Eu
também seguirei nela, visto que a minha missão terminou ao apanhar a presa.
Gonçalo
percebeu que nunca chegariam vivos a Lisboa para se defenderem, pois o maldito
espião acharia maneira de os calar para sempre. O Mestre falou, hesitante:
– O Capitão-mor
está com todos os oficiais em terra e eu…
Martim
Pereira não deixou escapar a ocasião, dizendo com arrogante autoridade:
– Eu sou
oficial da guarda d’El-Rei e, pelos poderes conferidos pelo meu regimento,
posso decidir do destino dos prisioneiros. Vamos levá-los daqui para a naveta
de Gaspar de Lemos e mais tarde prestarei contas ao Capitão-mor.
Os três
homens de Pereira e dois soldados só a duras penas lograram transportar Mateus
para a tolda. Gonçalo, ladeado pelos outros dois soldados, ao passar diante do
escrivão, disse:
– Mestre
Caminha, juro-vos que estou inocente!
– Isso dizem
todos os traidores! Se voltar a falar, amordaçai-o – atalhou, escarninho, o
espião.
O
escrivão achava a história muito mal contada, mas não sabia o que fazer. Por
ora deixaria seguir os acontecimentos, porém, nesse mesmo dia e na primeira
oportunidade que se lhe deparasse, não deixaria de expor ao Capitão-mor as suas
dúvidas acerca deste caso tão estranho.
Só
havia um escaler encostado à nau e poucos marinheiros assistiram à sua prisão e
embarque, pois toda a equipagem e a gente de armas estavam com o Capitão-mor,
folgando em terra. Pahanjara e Jabuti tremiam de raiva e impaciência, mas o
olhar e alguns gestos rápidos de Uraçá impediam-nos de agir para libertar os
amigos.
Não
sabiam o que sucedera, no entanto conheciam o estrangeiro de nobre coração que
conquistara o amor de sua irmã e também haviam visto que aquela luta não fora
leal e, por isso, não podiam consentir no seu castigo. Tentaram entrar na
naveta para conhecer o destino dos dois prisioneiros, mas os soldados não lho
consentiram, tendo o batel tomado em seguida o rumo da praia onde os
desembarcaram. Os dois irmãos correram a alertar a tribo.
***
Os
galos cantaram na capoeira anunciando a manhã. Não tantos como na nau
capitânia, que aí mais pareciam uma fanfarra a soar o toque da alvorada, sendo
o sinal para os grumetes despertarem e tratarem do mata-bicho, dando começo às
tarefas diárias.
Gonçalo
estava desfeito pela noite sem dormir e pela sua impotência perante um destino
que parecera sorrir-lhe na desgraça e acabara por troçar dele impiedosamente,
atirando-o de novo para as garras dos seus inimigos no momento em que se
julgara livre e ser feliz lhe parecera de novo possível. Perdia tudo desta vez,
inclusive a vida. Essa vida, ainda tão curta, dera mais voltas do que um pião e
a recordação da infância ditosa, sob a protecção e carinho dos pais,
parecia-lhe mais um sonho ou uma fantasia do que uma lembrança de algo real.
O
movimento da vida a bordo chegava abafado até ele, mas tudo parecia retomar o
ritmo costumeiro e os marinheiros, se sabiam alguma coisa do que se passara na
tarde anterior, preferiam não falar disso, pois a traição era um crime sem
perdão. Ao ouvir os ruídos e a azáfama da nau, o Campanário ergueu-se num salto, como sempre fizera, mas gemeu e
teve de se apoiar ao Assanhado para
não cair. Com mais cuidado, moveu as pernas e os braços, retesou os músculos e
disse satisfeito:
– Os meliantes
nem força tiveram pra me quebrar os ossos! Se não estivesse zonzo, nem a
primeira trancada me tinham dado! Assim, deixaram-me de tal maneira que nem dei
por nos trazerem pr’ aqui. Devemos estar prestes a partir para Lisboa…
–
Martim Pereira não nos vai deixar sair daqui com vida, sabes isso, não sabes?
– Sim, nã pode correr o risco
de nos deixar contar a verdade.
Ficaram em silêncio. Silêncio
pesado que Gonçalo não conseguiu sofrer por muito tempo:
– Perdoa, meu amigo, por te
ter arrastado comigo para a morte.
Mateus disse, com um suspiro:
– Só por ter conhecido Uapê e
Arati, valeu a pena.
Gonçalo pensou em Igapê e
chorou.
Cap. VIII
A Carta
O alçapão abriu-se e dois grumetes desceram
as escadas, seguidos por mais de uma dezena de nativos carregados com molhos de
pau-brasil. Com gestos e graçolas, os portugueses indicavam aos homens pardos
onde empilhar e como amarrar a madeira para que não rolasse pelo soalho, com o
balanço da nau durante a viagem. Estavam contentes por irem para casa mais cedo
e falavam disso.
– Partimos amanhã de manhãzinha pra casa –
disse o mais novo, bem alto, para que os prisioneiros ouvissem.
Estavam proibidos de falar com eles e quem
desobedecesse ficava sujeito a pesado castigo, mas o rapaz tinha pena dos
grumetes que conhecia de vista das suas idas em terra e gostara das aventuras
do Assanhado. Custava-lhe a crer que ele fosse um espião e um traidor.
Por isso, enquanto falava para o companheiro, procurava dar-lhes algumas
notícias do que se passava lá fora, porque ali, às escuras de manhã à noite,
nem deviam saber a quantas andavam.
– Também folgo de partir que p’ra aventura
já me chega esta. Nunca mais largo de Lisboa. Mais vale ser pobre em terra…
Dois nativos aproximaram-se deles
sorrateiramente e desferiram-lhes um golpe na cabeça com os duros paus cor de
brasa e os homens tombaram por terra sem tempo de soltar um ai. Gonçalo,
espantado, reconheceu nos assaltantes Jabuti e Pahanjara que vinham
libertá-los. Itâna e Taari eram outros rostos familiares no grupo de guerreiros.
Os dois irmãos recomendavam-lhes por gestos que se apressassem.
– As correntes! – murmurou Gonçalo, com
desespero. – Esses dois não têm as chaves. Só o guardião e nunca as larga.
– Será que são precisas? – perguntou o Campanário. – Na minha aldeia pagavam
para me verem fazer isto.
Enchendo
o peito de ar, retesou os músculos e afastou as mãos cujos pulsos estavam
enfiados em dois aros de ferro ligados entre si por uma curta mas grossa
cadeia. A corrente esticada parecia impossível de quebrar e os músculos do
gigante prestes a explodir. Gonçalo e os guerreiros de Jacaúna olhavam
fascinados o terrível esforço, mal se atrevendo a respirar. O Campanário encheu uma vez mais o peito
de ar, as bochechas incharam-lhe no rosto vermelho e suado e, num sacão
violento, esticou a cadeia. Com um estalido a corrente rebentou. Os guerreiros
saudaram o feito erguendo os seus punhais de pedra. Já ninguém duvidava de que
faria o mesmo às correntes dos pés. Soltar o Assanhado foi-lhe ainda mais fácil, pois estando livre logo
arranjou um prego e, num abrir e fechar de olhos, soltou os fechos das
grilhetas que prendiam o amigo.
–
Para um bom ferreiro nenhum fecho tem segredos!
Até
ali tudo fora demasiado fácil, pensou Gonçalo, mas como poderiam sair da naveta
com o Campanário sem darem nas
vistas?
–
Como vais tu sair daqui? – perguntou.
–
Havia cá muito pouca gente quando nos trouxeram e ainda menos nos viram depois
disso. Posso passar por um desses – apontou para os marinheiros ainda
inconscientes, – desde que cubra a cara e me curve um pouco. E tu, despe-te…
para ficares vestido como eles.
Bom
plano… se resultasse, mas também já nada tinham a perder. Gonçalo despiu-se
rapidamente, mostrando as novas pinturas que dias antes Igapê havia criado na
tela viva do seu corpo e juntou-se aos guerreiros Tupiniquins. Pahanjara e
Jabuti mostraram no rosto o orgulho pela arte da irmã. Mateus apanhou o largo
sombreiro arrancado ao marinheiro pela paulada de Jabuti e enfiou-o na sua
própria cabeça. Felizmente servia-lhe. Viu uma saca vazia caída no chão e nela
meteu algumas ferramentas que lhe poderiam ser úteis em terra. Lançou a saca ao
ombro, disfarçando as marcas do rosto pisado e dobrando o corpo para se fazer
mais pequeno, pôs-se à frente dos guerreiros e fez-lhes sinal para que o
seguissem.
Subiram
as escadas, saindo para o convés e dirigiram-se para os batéis que esperavam os
carregadores a fim de os levar a terra. Ninguém lhes prestou atenção ou fez
perguntas. Era uma armada de treze navios cheios de gente que raramente convivia,
conheciam-se apenas os companheiros de bordo e mesmo esses, por vezes, muito
mal.
Ao desembarcarem,
dirigiram-se sem demora para a orla da floresta onde viram Igapê, Uapê e Arati
a esperá-los. As jovens correram ao encontro dos portugueses e o Campanário recebeu nos braços, cheio de
alegria, as duas bonecas cor de cobre que eram as primas de Igapê. Por uns
momentos Gonçalo ficou imóvel olhando Igapê, a flor-de-água que criara
raízes no seu coração. Voltar a vê-la, depois de a ter julgado perdida para
sempre, era como um sonho e sentiu medo de despertar, mas a filha do Pajé, acercando-se dele, pousou os
lábios com infinita doçura na feia cicatriz da sua fronte e Uraçá pôde
perder-se de novo na serena noite dos seus olhos.
Itâna murmurou qualquer coisa a
Pahanjara e Jabuti (que olhavam sorrindo a ventura da irmã), talvez a lembrar o
perigo que corriam e a moça soltou-se dos braços de Uraçá e entraram por fim na
floresta que os escondeu sob o seu manto protector.
***
Na
taba de um outro clã de
parentes de Jacaúna, bem no interior da floresta, Uraçá escrevia febrilmente
uma carta para Pêro Vaz de Caminha. Tinha de lhe contar a verdade e preveni-lo
contra Martim Pereira pois, partindo na naveta e estando na posse do mapa,
nunca mais lograriam deitar-lhe a mão e os Reis de Castela ficariam, com muito
pouco trabalho e pequena despesa, na posse de um tesouro precioso – uma derrota
de mar para as especiarias.
Dava
graças a Deus, aos pais e a El-Rei D. João II por ter aprendido a escrever,
posto que nesse seu engenho e talento residia agora toda a esperança de
salvação e de um dia poder regressar a Portugal. Usava as folhas de papel dadas
pelo escrivão a Pahanjara e Jabuti, em paga da paciência com que eles se haviam
deixado examinar e dos enfeites de contas e penas que lhe tinham oferecido, e
Igapê fizera várias tintas até conseguir uma que não esborratava o papel. Os
amigos caçadores trouxeram-lhe plumas de muitas aves e o grumete aguçou-as em
bico, em sucessivas e desesperantes tentativas, até conseguir desenhar palavras
legíveis.
Contava ao escrivão a
sua história, o orgulho de ser filho de quem era, a educação na corte de D.
João II, a morte do pai, a sua vida com o padrasto e como descobrira a traição,
roubara o mapa e fugira na Armada para escapar às represálias de Afonso Freire,
mas o braço vingativo do traidor chegava mais longe do que ele pudera pensar.
Terminou dizendo que Mestre Caminha era a única pessoa em quem podiam confiar
e, por isso, trataria de lhe fazer chegar a carta escrita para reabilitar o seu
nome, pois devia isso à memória de seu pai que sempre lhe ensinara a fidelidade
devida ao Rei e ao Reino de Portugal. Endereçou a carta a Pêro Vaz de Caminha e
Coati, o moço mais veloz na corrida, partiu como uma flecha ao encontro dos
portugueses.
Pêro Vaz de Caminha tinha nesta viagem o cargo de
registar, para El-Rei D. Manuel, tudo o que observasse e ouvisse de importante
e o grumete vira sempre nele, pelo modo como o interrogara sobre os seus amigos
e os costumes da terra, o desejo de saber a verdade, de conhecer todos os
factos, esmiuçando-os até já se não poder saber mais. Ao ler a carta, não
deixaria por certo de verificar a sua história, de inquirir até onde pudesse
para apurar a verdade. E ele? Chegaria a
saber alguma vez o fim desta aventura? Só o tempo o diria...
Dirigiu-se com Igapê
para o rio, a ver do Campanário que Uapê e Arati não deixavam sozinho nem um
instante, tentando levá-lo a tomar banho, a fim de o prepararem e coatiarem
como a um verdadeiro caçador da tribo. As duas moças troçavam do seu medo da
água e não compreendiam por que gostava aquele belo gigante de ter pêlos no
corpo como um bicho da floresta, de se cobrir com as feias peles dos
estrangeiros e de cheirar mal como um javali.
Os seis guerreiros
que, a pedido delas, tinham tentado fazer-lhe o mesmo que haviam feito a Uraçá
– agarrando-o em peso e lançando-o à água –, foram enviados pelo ar para dentro
do rio, num abrir e fechar de olhos, perante as gargalhadas e os chistes das
moças que folgavam com eles, deixando
Uapê e Arati a impar de orgulho e de adoração pelo valor do seu pretendente.
Fora assim que Mateus Ferreiro, o Campanário,
ganhara o seu novo nome de guerra, Manati,
do enorme e pachorrento peixe-boi que vive tranquilo pastando algas no fundo
dos rios, por ser tão forte que nenhum outro animal se atreve a atacá-lo.
Uraçá e Igapê viram, sobre os penhascos
escarpados do rio, as duas primas entregues a um estranho ritual tendo Mateus
por vítima. O gigante parecia muito assustado e recuava perigosamente para a beira
do rochedo, encurralado por Uapê e Arati que, avançando implacáveis, lhe
apontavam uma grossa manga a contorcer-se como se tivesse vida. Porém, logo
reconheceram que não se tratava de qualquer manga ou cana, mas sim de uma
jibóia enorme, uma espécie de animal de estimação, tolerada na oca por ser inofensiva e boa para
caçar ratos. A primeira vez que a vira também Gonçalo julgara morrer de medo.
Riram-se, como outros muitos que assistiam
à farsa, divertidos por verem como as duas moças tinham conseguido arranjar
maneira de levar Manati a tomar banho, sem usar a força. E o resultado não se
fez esperar, pois a um movimento mais arqueado da enorme cobra, Mateus deu um
salto para trás e despenhou-se no rio, gritando e esbracejando como um
possesso. De imediato as duas moças soltaram a jibóia e lançaram-se do alto do
penhasco, num voo simultâneo e perfeito, para mergulharem nas águas e pescarem
o sufocado Manati. Todos os que por ali folgavam se juntaram à brincadeira,
incluindo Uraçá e Igapê, e as roupas do gigante indefeso foram rasgadas e
arrancadas do seu corpo, desaparecendo sem deixar rasto. Eles sabiam que,
depois de Uapê e Arati exercerem as suas artes, um novo guerreiro surgiria na oca e o velho Pajé sofreria
resignado a presença de mais um emboaba
no seu clã.
***
O
Capitão-mor decidira que na sexta-feira, dia primeiro de Maio, a Armada inteira
desembarcaria para a cerimónia da Cruz e da despedida. Os batéis de todas as
naus fizeram várias viagens até acabarem de despejar as suas gentes na praia e,
por fim, Pedro Álvares Cabral embarcou no seu batel com os oficiais e a
bandeira que lhe dera El-Rei D. Manuel.
–
Será melhor chantar[71] a Cruz ali, acima do rio e contra o sul, para melhor ser vista de quem
venha do mar – ordenou aos seus homens,
mal chegou a terra.
–
E com a divisa e as armas d’El-Rei de Portugal, será um bom aviso para qualquer
nação que aqui queira meter o dente – acrescentou Bartolomeu Dias.
Enquanto alguns grumetes faziam a cova, o Capitão-mor com
todas as equipagens e os padres foram buscar a Cruz onde os carpinteiros a
tinham deixado na terça-feira, abaixo do rio. Ali, os homens a tomaram sobre os
ombros e logo se formou uma procissão, com os padres adiante a cantar cânticos
de louvor a Jesus Cristo e à Virgem Maria. Muitos nativos se acercaram para ver
o que faziam os estrangeiros e logo alguns se juntaram ao cortejo e, metendo-se
por baixo da cruz, ajudaram a carregá-la até ao sítio onde seria cravada na
terra. Armado um altar junto dela, Frei Henrique oficiou uma missa cantada,
acolitada por todos os padres e observada por cerca de cinquenta indígenas que
se ajoelhavam e erguiam as mãos ao céu, tal como viam fazer aos portugueses.
Jacaúna descera à praia e seguira com muita atenção e
cheio de maus pressentimentos a magia dos pajés estrangeiros e
agora procurava avisar os seus homens dos perigos que esta gente representava
para o seu mundo, rogando-lhes que se afastassem para bem longe, mas eles
pareciam enfeitiçados. Pêro Vaz de Caminha viu o velho xamã andar entre os seus
homens, falando com grande agitação e
disse para o Capitão-mor:
–
Vede como aponta para o céu e para nós. Não
tenho dúvidas de que estes nativos estão desejosos de se fazerem cristãos.
–
Também assim me parece – respondeu Pedro Álvares Cabral. – Oremos por isso e
agradeçamos a Deus por se ter servido de nós para tão nobre missão.
Frei Henrique subiu a uma cadeira, posta junto ao altar,
e pregou o seu Evangelho aos homens sentados que o escutaram com emoção,
enquanto ele lhes recordava a missão santa e virtuosa que os esperava na Índia
– espalhar a fé cristã e converter os infiéis e os gentios. Quando o padre
acabou de pregar, Nicolau Coelho aproximou-se dele com um saquinho e disse:
–
Tenho aqui cinquenta pequenos crucifixos de
estanho que me sobraram da primeira viagem à Índia. Podíamos dá-los a esta boa
gente que assistiu à missa com a devoção de veros cristãos.
–
Parece-me muito boa ideia, pois assim não se esquecerão tão depressa dos nossos
ritos e cerimónias. – E o padre acrescentou: – Eu mesmo lhos darei para que os
tomem como um ritual sagrado.
E o padre Henrique sentou-se junto à Cruz e foi lançando
os crucifixos atados por um fio ao pescoço dos homens pardos e nus, um a um,
fazendo-os primeiro beijar a cruz e erguer as mãos ao céu.
Em seguida, o Capitão-mor deu ordem de recolher às naus
para comer, pois já passava do meio-dia e, aproximando-se de Jacaúna,
convidou-o por acenos a ir com ele até à capitânia. O velho Pajé aceitou, na esperança de
esconjurar os maus espíritos. No momento em que Pêro Vaz de Caminha ia entrar
para o batel, Coati aproximou-se a correr e sem uma palavra entregou ao
espantado escrivão a carta de Uraçá.
***
Caminha
acabou de ler a carta, com os olhos húmidos de emoção. A fuga dos grumetes dera
brado e os dois degredados que iam ser deixados em terra tinham recebido ordem
para abater os traidores mal os avistassem. O mais acirrado perseguidor fora
Martim Pereira, chegando a ir à aldeia do Pajé
Jacaúna, mas o Capitão-mor tinha-o proibido de exercer qualquer violência sobre
os nativos e ele também não vira lá qualquer traço da presença dos fugitivos,
embora tivesse passado revista a todas as cabanas, para grande pasmo dos seus
habitantes.
Tal
conduta aumentara as desconfianças do escrivão que acabara por falar delas ao
Capitão-mor e este concordara em manter o arrogante oficial, apesar dos seus
plenos poderes, debaixo de olho. Agora, Caminha tinha a certeza da inocência do
infeliz grumete, pois o seu instinto dizia-lhe que aquela carta nunca poderia
ter sido escrita por um traidor. Por isso, ao chegarem à nau, pediu para ser
recebido em privado por Pedro Álvares Cabral, a fim de lhe dar a carta a ler.
–
Uma história espantosa, Pêro Vaz – exclamara
o Capitão-mor, ao acabar a leitura –,
e que desperdício a fuga de tais moços para uma selva desconhecida!
–
Também os achais inocentes?
– Sim, não me parece que o moço fosse capaz
de inventar uma história destas, com tantos dados tão fáceis de provar.
–
Que pensais fazer?
– Falarei à puridade[72]
com Gaspar de Lemos para ter vigilância apertada sobre Martim Pereira, até
chegarem a Lisboa, a fim de que nenhuma carta ou livro de marear lhe caia nas
mãos. E, logo que surjam no porto, levará ao Meirinho-mor um relato meu destes
graves sucessos e das nossas suspeições.
– E esta carta do grumete, denunciando
Afonso Freire, talvez o ajude na sua inquirição – sugeriu o secretário.
– Certamente, pois tem havido muitos
rumores sobre uma rede de espiões a soldo de Castela e de muitas fugas de
informações, por traidores portugueses, acerca das novas terras descobertas e
dos tratos com os povos desses lugares.
– Antes mesmo da nossa partida, já El-Rei
ordenara que se fizesse devassa[73]
e se descobrissem os culpados mas, que eu saiba, ainda não tinham deslindado a meada
ao tempo da nossa largada.
– Talvez isto venha a ser a ponta do
novelo… e o grumete o herói da história. O Capitão entregará também a Sua
Majestade um registo meu, com o selo especial que me deu para documentos só
para os seus olhos. Na vossa missiva, Pêro Vaz, calai este assunto para que o
roubo do mapa se mantenha em segredo e dele não chegue sequer um rumor aos
ouvidos dos castelhanos.
–
Assim farei, meu senhor. Quanto ao moço…
– Escrevei-lhe algumas palavras e
deixaremos a carta com os degredados a quem darei ordens, à puridade, para o
deixarem em paz. Quem sabe se, no regresso, não o veremos na praia a dar-nos as
boas-vindas?
– Oxalá, meu senhor, oxalá… – e
retirou-se para a sua câmara a fim de terminar a carta a sua Alteza, el-Rei D.
Manuel.
Sentado à sua mesa retomou as
folhas e releu o que tinha escrito, depois alisou num gesto maquinal a última,
ainda incompleta, e molhando a pena no tinteiro começou a escrever:
“Creio,
Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite
se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos
que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui partida.”
Não diria mais nada
sobre os grumetes, seguindo a recomendação do Capitão-mor, esperando em Deus que
se fizesse justiça e os moços ainda estivessem vivos quando tudo ficasse
esclarecido e os verdadeiros criminosos justiçados. Com um suspiro, deu início
à conclusão da sua carta:
“...
até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem cousa alguma de
metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de mui bons ares, assim
frios e temperados, como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora
os achávamos como os de lá.”
Neste ponto, Caminha
suspendeu a pena e reflectiu que a ausência de ouro e prata seria, sem dúvida, uma triste notícia para o
Rei Felicíssimo. Então, com uma ruga de preocupação a formar-se na testa,
acrescentou depois de mais algumas considerações sobre a terra:
“Porém,
o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E
esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
E
que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de
Calecut, isso bastaria. Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que
Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
acrescentamento da nossa santa fé.”
Parou de escrever e
pensou como seria magnífica a obra de transformar aqueles gentios tão inocentes em cristãos! Notara que na
graciosa fala dos homens da selva não havia os sons de três letras do A, B, C,
que eram o F, o L e o R e quando disso falara ao Padre Henrique este lhe
contestara com muita verdade: “Se não têm F, é porque não têm Fé em nenhuma
cousa que adorem; se não têm L, é porque não têm Lei para se governarem e cada
um faz a lei a seu modo; e se não têm R na sua pronunciação, é porque não têm
Rei que os governe e a quem obedeçam”. Por isso, os portugueses e el-Rei D.
Manuel poderiam preencher estas faltas e dar a este bom povo um mundo cristão,
com rei e com polícia. Assim, Sua Alteza o desejasse, mesmo se naquela terra
não houvesse ouro, prata e pedrarias! Suspirou, pondo de lado a missiva para
el-Rei e tomando uma folha nova começou a escrever a Gonçalo. A pouco e pouco a
ruga desfez-se e um sorriso divertido e terno assomou aos lábios do escrivão.
***
Na Gruta do Recife Vermelho, o Pajé Jacaúna
queimava as ervas sagradas, chamando a si o dom da Visão, enquanto murmurava
uma prece a Tupã, Deus do Trovão e das Tempestades, a fim de lhe comunicar o
seu pedido. Purificara o corpo nos fumos da erva-santa e bebera o yajé e o caapi[74],
onde misturara um pouco de pó de ossos de todos os pajés que antes dele haviam
praticado os ritos de adoração, de súplica ou de maldição, para que o seu
espírito pairasse forte entre o céu e a terra e assim pudesse receber ajuda.
O
velho Xamã estivera no ventre do Grande Pássaro onde viajava o chefe dos
Emboabas e vira o poder mortífero das gigantescas zarabatanas negras que,
presas aos flancos da ave, vomitavam fogo, pedras e matérias nunca antes
vistas, arrasando rochas, árvores, animais e... homens, com a força e a fúria
do raio de Tupã. O feiticeiro soubera então que não podia aceitar sem luta a
destruição do seu povo, nem virar o rosto e proferir apenas preces de
suplicante para manter os estrangeiros longe da sua terra; eles teriam de ser
sacrificados para a grande raça Tupi-Guarani poder sobreviver e Jacaúna seria o
causador da sua aniquilação.
Assim, o Pajé invocava todos os seus
poderes e os dos espíritos do lugar sagrado, para o feitiço enredar na sua
teia, um a um, os funestos pássaros que desdobravam as brancas asas ao vento,
iniciando o seu voo à superfície das ondas. Cantava para cada um uma canção de
morte, chamando a si as forças da natureza, dos céus e dos mares. A cada
encantamento, o velho feiticeiro talhava no seu próprio corpo com a faca do
sacrifício o padrão do desastre e da ruína, selando com o seu sangue e o fogo
sagrado o destino de muitas almas.
Porém, todos os dedos das mãos do Pajé não
bastavam para contar os pássaros de asas brancas e o sangue já não abundava no
velho corpo ressequido. Ao terminar a canção do último dedo da sua mão direita,
que a custo conseguiu separar do corpo, Jacaúna sentiu-se enfraquecer e a
angústia de não conseguir terminar a sua missão interrompeu-lhe por instantes o
canto. Pensou nos Emboabas que recebera na sua oca, dois irmãos guerreiros e
viajantes e lembrou o olhar profundo do mais velho de estranho nome –
Bartolomeu – porque ele fora escolhido por Tupã e sabia reconhecer a presença
oculta dos espíritos. Mas também este tinha de morrer.
Ao encetar o encantamento do primeiro dedo
da sua mão esquerda, abrindo um sulco até ao osso, o velho xamã desfaleceu e
tombou sobre a esteira, continuando a sua reza até as forças o abandonarem e a
vida escorrer do seu corpo em seis lentos fios vermelhos que secaram no rescaldo
da fogueira. A teia do seu sortilégio enliçara apenas cinco dos doze pássaros
gigantes e só estes seriam destruídos; o sexto, cujo encantamento não lograra
terminar, andaria perdido pelo mundo até expiar as suas culpas[75].
***
Bartolomeu
Dias parou a meio de uma ordem ao seu piloto nas manobras da partida. Um frio
terrível arrepiara-lhe a pele e o navegador quis afastar o negro pressentimento
que o assaltou sem qualquer aviso, mas a imagem do Pajé tornou-se nítida no seu
espírito como uma visão de morte. No dia anterior, ao receber Jacaúna na
capitânia e para o espantar, Pedro Álvares Cabral fizera disparar as bombardas
contra a praia. No olhar medonho que o feiticeiro lhes lançara, Bartolomeu Dias
pudera ler o ódio e a condenação, melhor do que nas palavras que proferira e
ninguém entendera.
O
dia era de sol e alegria, porém o capitão sentiu o Medo, a Dor e a Morte à sua
volta e, de súbito, compreendeu que o Pajé amaldiçoara a Armada e que a viajem
não teria um final feliz. Olhou a praia e aquele povo generoso a acenar-lhes um
adeus e, semicerrando os olhos, recolheu-se numa breve oração à Virgem,
pedindo-lhe protecção e socorro. Em seguida, retomou a sua posição junto ao
piloto, vigiando as manobras.
Toda a tribo dos Tupiniquins
acorrera à praia para assistir à partida dos Emboabas e fazer as suas
despedidas. Os dois degredados tinham avançado mar dentro, com os sentidos
postos nos companheiros que partiam e os deixavam naquela terra estranha entre
selvagens nus, usando ainda machados de pedra e lanças feitas de paus aguçados.
Com a água pela cintura, sentiam as lágrimas correr-lhes pelo rosto e nem
cuidavam em limpá-las. Condoídos, os homens da floresta acercaram-se deles e
levaram-nos para a praia, falando-lhes com palavras cujo significado não
entendiam, mas consolando-os com a voz e o gesto de amigos.
Uraçá
chegou à orla do mar, acompanhado de Igapê, Pahanjara e Manati, que parecia só
ter olhos para Uapê e Arati penduradas nos seus braços. O enorme ferreiro
estava irreconhecível, pintado da cabeça aos pés como um guerreiro de fábula
das iluminuras antigas, pois as duas primas igualavam Igapê na arte de pintar
corpos e tecer adornos de penas. Gonçalo viu a Armada a afastar-se no seu
orgulhoso alinhamento, de proas viradas a Oriente e velas brancas enfunadas, exibindo
as vermelhas cruzes de Cristo como um símbolo da sua missão. Sentiu um nó na
garganta, mas notou o olhar ansioso de Igapê a procurar-lhe no rosto as emoções
da perda do seu mundo e sorriu-lhe com ternura.
Os
degredados acercaram-se dele, ainda com lágrimas nos olhos (o que o deixou mais
descansado quanto às intenções dos compatriotas a respeito dos fugitivos) e
Afonso Ribeiro entregou-lhe uma carta.
– É de mestre Caminha.
O
grumete fugitivo agradeceu, contente por ser este o degredado que Pedr’Álvares
Cabral deixava em Terras da Vera Cruz ou, como os matalotes preferiam
chamar-lhe, Terras do Pau Brasil ou só mesmo Brasil. Olhou a carta e suspirou…
afinal, talvez um dia pudesse volver a Lisboa a visitar a mãe. Ergueu a mão num
gesto de adeus à Armada. Duas araras riscaram o céu de azul e vermelho,
soltando o seu grito de liberdade. Também Uraçá, entre os homens da floresta e
o amor de Igapê, lograra soltar finalmente o coração de Gonçalo do punho
cerrado da sua revolta, permitindo-lhe pulsar de novo ao suave ritmo do amor,
da amizade e da esperança.
FIM
BIBLIOGRAFIA
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in O Reconhecimento do Brasil –
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Azurara, Gomes
Eanes de – Crónica do Descobrimento e
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Sousa, Gabriel
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[1]
Mariola era o nome dado àqueles que não tinham trabalho certo, que prestavam
alguns serviços em troca de umas moedas.
[2]
Trabalho, profissão.
[3]
Ver “O Cometa”, da mesma autora.
[4]
Uma onça corresponde a 28,35 gramas.
[5]
Medida antiga que corresponde a 1,4 litros.
[6]
Moeda antiga de ouro ou prata no valor de 400 réis.
[7]
Marinheiros.
[8]
1 quintal = 4 arrobas = 60 quilogramas.
[9]
Calças bragas: largas e curtas; imperiais: de roca ou balão, muito largas,
apertando no tornozelo, confeccionadas com grandes quantidades de tecido rico. Pelote:
casaco fechado, pelos joelhos. Tabardo: manto que descia até meio da perna,
fechado e fendido (com golpes) e com grandes cavas. Opa: casaco muito amplo e
comprido, com mangas largas e gola alta. Saio: vestido amplo, estreito na
cintura e peito, com diferentes tipos de mangas.
[10]
Manto ou capa ampla fechada que se vestia sobre a outra roupa.
[11]
Botas até ao joelho, com atacadores.
[12]
Os espelhos eram raros no século XVI, importados de Itália e tão caros que só
os nobres e ricos os podiam comprar.
[14] Folha de
pergaminho dobrada em duas partes.
[15]
Os que tratavam das velas e cordoaria nos navios.
[16]
Antiga peça de artilharia (canhão) que arremessava grandes balas de pedra.
[17]
Poder de condenar à morte por enforcamento (baraço/corda) ou decapitação
(cutelo/espada).
[18]
Cabelos brancos.
[19]
O 2º comandante, que substituiria o Capitão-mor no comando da Armada, se algo
lhe acontecesse.
[20]
Tambor de metal (vindo do Oriente), em forma de meio globo, coberto de uma pele
esticada onde se toca.
[21]
Antigo instrumento musical, espécie de marimbas metálicas.
[22]
Depressa.
[23]
Rota, mapa de um percurso de navegação.
[24]
Perturbar, incomodar.
[25]
Prisão.
[26]
Batéis, escaleres.
[27] O
barbeiro tinha funções de médico e cirurgião. Só ia médico nas armadas mais
importantes ou na nau do Governador ou do Vice-Rei.
[28]
Cordas, cordoalha do navio.
[29]
Durante o período da Páscoa, os oito dias que terminam no Domingo de Pascoela.
[30]
Entre as 15 horas e o pôr do sol.
[31]
Prémio.
[32]
Ancorar.
[33]
Pequena peça de artilharia.
[34]
Os órgãos sexuais.
[35]
Cor entre o branco e o negro. Os portugueses conheciam a cor negra de várias
raças da Guiné e do Oriente, mas nunca tinham visto índios brasileiros, com uma
pele assim avermelhada, por isso os rotularam de “pardos”.
[36]
Intérprete.
[37]
Pão em forma de bolacha que se comia a bordo dos navios, cozida em forno duas
vezes para as viagens curtas e quatro vezes para as grandes viagens. Era assim
cozido para perder a humidade e poder guardar-se, durante muito tempo, sem se
estragar.
[38] Antiga
unidade de comprimento com que se media a profundidade do mar, correspondente a
dez palmos, ou seja, a 2,20 metros.
[40]
Ave de rapina do Brasil, espécie de açor.
[41]
Guizos.
[44] “Sim, vim.” – Resposta
ritual.
[45] “Bem dito.” e “ Qual é o teu
nome?” – Conclusão da saudação ritual a um hóspede.
[46] História, narrativa de
guerra.
[47] Nome que os índios davam aos
portugueses no tempo da colonização.
[48] Ossos das fossas nasais.
[49] Recinto da aldeia, espécie
de praça, formado pelas cabanas dispostas em círculo.
[50] O ananás era um fruto
desconhecido dos europeus, até à descoberta do Brasil.
[51] Verbo índio que significa
pintar.
[52] Coatiado, pintado.
[53] Pau cor de brasa.
[54] Menina, criança.
[55] Administrador ou tesoureiro da Casa Real.
[56] Saltos mortais.
[57] Palavrões, obscenidades.
[58] Rebocado por barco, preso à corda.
[59] Pássaros de muitas cores e belo canto.
[60] Meninos maus.
[61] Arbítrio, poder de decisão.
[62] Tamanduá é um parente do
urso-formigueiro gigante de que trata o texto, mas nos Séculos. XVI e XVII era
este o nome que lhe davam.
[63] Pêlos, cabelo, crinas.
[64] Sacerdote e feiticeiro que
pratica exorcismos.
[65] Mistura de substâncias
aromáticas, embrulhadas em folhas de bétele, que na Índia e em outras regiões
tropicais, as pessoas têm o hábito de mascar (mastigar e cuspir).
[66] Ventos favoráveis que
permitiam o avanço das naus e a passagem do Cabo da Boa Esperança. Quando saíam
já fora do período das monções havia quase sempre desastre.
[67] Pequena cabaça. Para marcar
a idade, os índios guardavam uma castanha, de cada estação de caju.
[68] Canoa feita de um tronco
escavado.
[69] Espécie de golfinho branco.
[70] Presunto.
[72] Em privado, em particular.
[73] Inquérito.
[74] Bebidas feitas de ervas que
provocavam alucinações.
[75] Ao chegarem ao Cabo da Boa
Esperança, cinco navios da armada de Cabral naufragaram, um deles foi o de
Bartolomeu Dias, não havendo um único sobrevivente. A nau de Diogo Dias perdeu-se e andou um ano à
deriva, conseguindo voltar a Cabo Verde, mas dos cerca de 100 homens que tinha,
apenas restavam 13 que mal conseguiam manobrar o navio. (Ver conto “O Cometa”).
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